segunda-feira, 8 de março de 2010

Por exemplo

Os vizinhos estão brigando por causa dos lençóis sujos num apartamento da Rua Bela Cintra. Ela não lavou nada hoje. Saiu de casa por volta das nove, quando ele foi para o trabalho, e andou bastante no shopping. Viu as vitrines. Não comprou nada. Ficou quatro horas assim, vagando pelos corredores, e os lençóis sujos em casa.

Os vizinhos continuam brigando. Uma luz acendeu na janela.

Eles não têm máquina de lavar nem dinheiro para a lavanderia. Ela nunca tinha ido ao Shopping sozinha, pela manhã, sem motivo aparente, sem ter que fazer compras. Ela queria ver as pessoas andando no shopping, enquanto ele trabalhava na empresa de Informática, a uma hora de ônibus. A briga continua. Ela começa a chorar, dizendo que não consegue, e as pessoas dos outros prédios estão querendo saber o que ela não consegue. Ele grita mais alto. Diz que o lençol está sujo de menstruação, que tinha comprado Omo e ela nem abriu o pacote. Então ela grita mais alto, reclamando que está cansada de esfregar roupa e ele responde que também está cansado de receber esporro do chefe porque sempre esquece de desligar os computadores à noite quando todo mundo vai embora. A discussão agora é sobre os computadores. Computador, computador, computador. Computador faz tudo sozinho, diz ela. Não é como ficar no tanque, lavando roupa, dá canseira. Ele diz que ela não entende nada de computador, nem tem e-mail, nem sabe o que isso. Só quer andar no shopping. O que você foi fazer no shopping?, pergunta bem bravo e ela responde que estava com uma agonia no peito, uma coisa pesada que passou depois de passear e ver vitrines.

Os lençóis ficaram um pouco de fora do bate-boca. Agora são os computadores da empresa que esquentam a briga. Ela diz que ele é muito distraído mesmo, deixa os computadores desligados porque em casa é a mesma coisa e nunca dá descarga na privada, por exemplo. Ela adora falar por exemplo o tempo todo e, além dos computadores, o por exemplo dela também vira motivo de desentendimento. Você só vive falando por exemplo, por exemplo. Ela responde que ele achava bonito quando ela falava por exemplo no tempo em que eram namorados. Ele diz que achava, mas não achava. São três anos de por exemplo, lembra ele. Mas ela volta agora à conversa da distração dele, das contas que esquece de pagar e também esquece de deixar dinheiro para as compras. Já está ficando tarde e eles passam a falar de tudo o que não gostam um do outro. Além do por exemplo ele não gosta quando ela diz que vai terminar tendo um treco, tudo é um treco, por qualquer coisa fala que vai ter um treco. E também detesta uma blusa vermelha que parece a única que ela tem, a cor do esmalte, a mania de comer em pé enquanto conversa, o resumo que ela faz das reprises das novelas que passam à tarde, a pintura do cabelo e o jeito de atender ao telefone sempre dizendo oi no lugar de alô. E ela dá o troco. Pela primeira vez diz que ele peida muito, ronca, não se lava direito e que quase só fica resmungando contra o chefe que reclama dos computadores desligados. Agora a briga ficou mais calma. Eles vão dormir. O lençol está sujo de menstruação. Daqui a pouco ele começa a roncar. Amanhã ela não vai ao shopping.

@_lulafalcão

3 comentários:

Gabriela Dalia disse...

Blog novo!
Bom e deprimido, como acho que já tinha lido; fico aliviada por não ser um estado de espírito atual.

Lula Falcão disse...

Não é estado de espírito atual nem anterior. É só um reportagenzinha com um pouco de tentativa de ficção. Vai ter mais: coisas novas e antigas.

Fernanda Ferrario disse...

Eu por exemplo gostei. Do texto.

Postar um comentário