A luta foi desigual. Cerca de 500 holandeses, fortemente armados, saíram da Ilha de Itamaracá, em Pernambuco, para saquear a pequena aldeia de São Lourenço do Tejucopapo, hoje distrito de Goiana, a 63 quilômetros do Recife. No local, quase não havia homens para resistir ao ataque. Restava basicamente uma tropa maltrapilha de mulheres - a maioria agricultoras de origem indígena. Mesmo assim, naquele abril de 1646, travou-se ali uma batalha épica, de fortes contra fracos, que entrou para história por ter terminado com a vitória do improvisado exercito feminino e a expulsão dos invasores.
Maria Camarão, Maria Quitéria, Maria Clara e Joaquina estavam à frente desse combate e, segundo historiadores, elas e suas companheiras usaram como armas objetos rústicos: estrovengas, paus, pedras e chuços – espécie de lança para catar crustáceo. Tachos com água fervente e pimenta foram especialmente preparados para peleja. O alvo eram os olhos do inimigo. Desnorteados pela ardência da mistura, os soldados holandeses caíam estrebuchando nas roças ou na única rua do povoado.
Avisadas da invasão, as guerreiras de Tejucopapo adotaram a mesma tática de guerrilha de seus homens que, no momento da batalha, se encontravam no Recife, vendendo caranguejos, ou envolvidos em tocais em outras plagas do litoral norte pernambucano. Sozinhas, elas preparam a resistência: construíram cercas paliçadas, cavaram trincheira e planejaram emboscadas. Na hora “H” também partiram para o luta direta, aos gritos, movidas pela fé religiosa e pelo desejo de defender a terra. Mais ardorosa, a líder Maria Quitéria seguia à frente, com um crucifixo em punho, bradando orações para os santos mártires Cosme e Damião. Os holandeses, então recuaram por algum tempo, mas voltaram para vingar seus mortos. Nessa investida, com machados e alfanjes (espécie de sabre), derrubaram paliçadas e mataram um número de mulheres até hoje não calculado.
A vitória holandesa, no segundo pico das escaramuças, parecia assegurada. Mas a resistência seguiu o ritmo do primeiro ataque, com nova carga de água fervente com pimenta. Estropiados, os soldados flamengos resolveram partir em retirada, pois àquela altura alguns homens nativos já estavam a caminho de São Lourenço, com suas espadas e espingardas. No final da sangrenta batalha, que durou quase todo o dia, havia 300 cadáveres holandeses no chão. Os sobreviventes correram para o porto, em busca de suas barcas de remo e vela, deixando para trás apetrechos de guerra, mantimentos roubados e corpos ensanguentados. Nunca mais voltariam ao povoado.
De acordo com a professora Luzilá Gonçalves Ferreira, pesquisadora da história das mulheres em Pernambuco e autora do livro “Mulheres e Abolição da Escravatura no Nordeste”, os holandeses foram até o aldeamento porque, já nos estertores da dominação em Pernambuco – e sem a presença de Maurício de Nassau , que voltou à Europa em 1643 -, armazéns do Recife e de Itamaracá se encontravam vazios, pois custavam a chegar alimentos do Recife. Famintos, mas bem armados, tiveram então que procurar provimentos mais ao norte. Tejucopapo tinha um porto e era passagem para o fértil povoado de São Lourenço.
No povoado, os invasores poderiam encontrar – e saquear - plantações e engenhos. “Sabiam [os holandeses] que em seu distrito havia roçarias de mandioca em muita quantidade, por ser a terra fértil e abundante delas, e muitos legumes e frutas de espinhos; e matando os moradores desta povoação antes que pudessem ser socorridos da nossa infantaria de Igarassú e da Goiana, de que era capitão maior Zenóbio Aciole”, registra Diogo Lopes Santiago, em “História da Guerra de Pernambuco”.
A historiografia brasileira assinala 400 baixas nas linhas flamengas e dá a Maria Camarão a primazia de ter convocado as mulheres para a guerra. Para os holandeses, o número de mortos não passou de 70. Em seus escritos sobre os fatos, o viajante Joan Nieuhof (Uelsen, 1618 - Madagascar, 1672) dá a versão dos invasores. “Considerando que a escassez de provisões constituía um dos principais obstáculos a serem vencidos do nosso lado”, escreveu ele, “julgou-se necessário estabelecer um pequeno acampamento perto de São Lourenço. Na narrativa de Nieuhof, que esteve na Índia e no Ceilão a serviços da Companhia das Índias Ocidentais, o efetivo era bem menor: “para lá foram enviados os tenentes Huykquesloot e Hamel, com 35 homens cada um, o primeiro procedente de Igarassú e o último de Muribeca, bem como o Capitão Wiltschut com mais 50 homens, do Recife, e Johan Listry, comandante em chefe dos brasileiros”. Pelo relato do viajante, o destacamento holandês era assim constituído:
Companhia comandada pelo Capitão Klaes Klaesz - 9 homens;
Forte Quinquangular (Cinco Pontas) - 25 homens;
Forte dos Afogados - 25 homens;
Itamaracá, sob o Comando do Capitão Willem Lambertsz - 50 homens;
Voluntários de Itamaracá - 30 homens;
Brasileiros (nativos) - 150 homens.
De qualquer forma, pesquisadores como José Bernardo Fernandes Gama (“Memórias Históricas da Província de Pernambuco”), Antônio Joaquim de Mello (“Varões Ilustres de Pernambuco”) e Pereira da Costa (“Anais Pernambucanos”) dão ao feito o caráter de “heróico”, baseados em grande parte em relatos de “O Valoroso Lucideno”, de Frei Manuel Calado, contemporâneo de tais acontecimentos. “Não sei se podemos chamar de ‘batalha’ os combates havidos em Tejucopapo”, afirma Luzilá, “O certo é que a derrota holandesa é descrita como resultado de uma espantosa coragem das senhoras que enfrentaram o inimigo com as poucas armas que possuíam”.
Século XIX – Contudo, até o início do século XIX, a resistência contra os holandeses em Pernambucano se restringia ao heroísmo masculino, representado especialmente nos atos de bravura do senhor de engenho André Vidal de Negreiros, de João Fernandes Vieira, do afro-descendente Henrique Dias e do indígena Felipe Camarão. Tejucopapo, esquecida por quase dois séculos, só ganhou alguma referência quando o País começou a construir sua identidade nacional e, de certa forma, a escrever sua história com mais objetividade e respeito às fontes documentais, seguindo a tradição germânica.
A partir da metade do século XIX as mulheres de Tejucopapo já tinham alguma notoriedade. O historiador Antônio Joaquim de Melo lembra que ao visitar Pernambuco, em 1859, o imperador Dom Pedro II foi ao povoado de São Lourenço para ver “o lugar onde as heroínas tejucupapenses, essas amazonas que se imortalizaram na história, roubaram aos homens a glória de defenderem a pátria contra o domínio estrangeiro”.
Para Marcos Galindo, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e autor de livros sobre o período, o episódio existiu, está razoavelmente documentado, mas não teve importância significativa no conjunto da Restauração Pernambucana. Contudo, salienta Galindo, as escaramuças de Tejucopapo serviram para agregar um mito à identidade nacional. “Os mitos são tão fortes quanto à história no processo social e civilizatório”, observa. “E atendia às necessidades de consolidação da nação em construção no século XIX”, acrescenta.
Nove anos depois de Tejucopapo, as tropas comandadas por Sigismund van Schkoppe se renderiam no Recife, após a famosa Batalha dos Guararapes, encerrando 24 anos de dominação holandesa. A luta das mulheres guerreiras ficou como um episódio isolado e pouco levado em conta no contexto da chamada “Restauração Pernambucana”. Desde o século passado, no entanto, a memória dessa batalha vem sendo recuperada. “Não é um fato para ser negligenciado”, afirma o jornalista e pesquisador Marcílio Brandão, autor de um filme sobre o tema. “Foi a primeira participação de um coletivo feminino em um conflito armado no Brasil”.
@_lulafalcão
*Publicado originalmente na revista Aventuras na História (junho 2010)
quarta-feira, 17 de novembro de 2010
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2 comentários:
Cá pra nós amigo Lula, não teria sido melhor deixar que os holandeses tivessem por lá se hospedado por mais um tempo e nos passado um pouco mais da sua cultura?
Homci
O ruim seria ficar sem a língua portuguesa.
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