Por Homero Fonseca
Sei não. Assisti ao “Film Socialisme”, de Jean-Luc Godard, uma derradeira e sincera chance que me dei para me convencer da genialidade do incensado diretor e assim me sentir inteligente como seus epígonos. Continuo burro.
Sei que estou mexendo num vespeiro, mas nunca digeri bem a obra do gênio da Nouvelle Vague. Sei de sua importância como um teórico que quebrou paradigmas do cinema comercial etc. Entretanto, uma coisa é teorizar, outra, criar.Talvez esse seja o preço que os grandes inquietos pagam: apontam caminhos, mas eles próprios não vão a canto nenhum pelos caminhos que inventaram.
É o caso do Joyce de “Ulisses” e “Finnegans”. Principalmente no primeiro (o segundo é tão delirantemente radical que mesmo Pound, principal avalista das experimentações do primeiro e responsável por sua “canonização”, o rejeitou), Joyce, que realmente sabia escrever, fez uma espécie de oficina do que seria o romance da modernidade. Ali estão todas as lições do texto contemporâneo, uma verdadeira aula. Mas como obra, é chato, pretensioso, hermético, cansativo, exagerado, quase gongórico.
Claro que reconheço o papel fundamental das vanguardas para renovar as artes, rompendo padrões cristalizados. Mas defendo que nem toda obra vanguardista tem valor apenas por ser vanguardista...
As chatices de Godard se enquadram, talvez menos eficazmente, naquela categoria joyceana de obra-demonstração, que funciona como manifesto, em detrimento da fruição estética. Para piorar, sua produção é o que se pode chamar cinema retórico (que seriam das vanguardas sem o discurso “externo” à obra, que a explique e eleve?). Uma marca registrada do octogenário realizador francês.
Em “Acossado”, que revi dia desses, não pude deixar de sorrir quando Jean Seberg, sentada num café à frente de Belmondo, faz uma pausa, assume um ar inteligente-casual meticulosamente encenado e pronuncia a frase pomposa: “Não sei se sou infeliz porque sou só, ou se sou só porque sou infeliz” (cito de memória e se a frase não é exatamente essa, é desse jaez). Em “O Desprezo”, o produtor de cinema interpretado por Jack Palance dispara “Quando ouço a palavra cultura, saco o meu talão de cheques”, numa paródia famosa e realmente engraçada de uma fala do personagem Thiemann, na peça “Schlageter”(1933), do dramaturgo alemão Hans Johst (“Quando ouço falar de cultura, saco logo a minha Browning”), que tem sido atribuída erroneamente ora a Goebbels ora a Goehring.
Pois bem, nesse “Film Socialisme” somos confrontados com pérolas como "o dinheiro foi inventado para que os homens não precisem se olhar nos olhos”, que a rigor não diz nada. Ou a sensacional descoberta de que "é irônico que o lugar fundado por judeus seja chamado de Meca do cinema", que não passa de um trocadilho.
É curioso como tantos cinéfilos, defendendo o cinema puro, não comercial, livre dos truques ilusionistas de Hollywood, engolem essa verborragia como o supra-sumo da arte imagística!
“Film Socialiste” tem uma sucessão de frases pretensiosas feito essas. Só não tem história, nem personagens, nem sequências, nem interpretação, nem roteiro. É o paroxismo do experimentalismo, aquele que nega de tal forma a arte estabelecida que nega a própria arte.
E no entanto, vem sendo aclamado como mais uma obra-prima por críticos-tietes. Como escreveu Luiz Carlos Merten, do Estadão*: “ Godard prescinde de história, de personagens. É até meio difícil dizer do que, afinal, trata ‘Film Socialisme’. [grifo meu]Digamos que, como todo Godard, é, acima de tudo, uma reflexão sobre o cinema.” Ah!
Essa crítica deslumbrada e complacente termina por jogar nos ombros do espectador a responsabilidade da edição do filme: “Como o fio condutor é tênue, cabe ao espectador articular esses movimentos, retirando deles seus significados profundos.”
E por aí vai, com quase nenhuma análise da obra, mas com argumentos como: “Um pouco da biografia ilumina o gênio. (...) São 80 anos de vida e mais de 50 como diretor. Anarquista de direita, virou radical de esquerda. Revolucionou o cinema. Até Hollywood reconhece. Ele está sendo homenageado com um Oscar de carreira. Como iria recebê-lo numa cerimônia fechada, não na grande festa de março, não compareceu. Está certo. Não teria a mesma graça.”
No jornal O Globo, o bonequinho que ilustra as resenhas de filmes aplaude de pé.
PS: Aliás, por falar n'O Globo, na crítica do filme “Cisne Negro”, de Darren Aronofsky, também aplaudido de pé pelo bonequinho (não vi ainda), Rodrigo Fonseca escreve coisas como: “Em nome do projeto estético de Aronofsky e de seu cinema de cólicas existenciais”... Como não faço parte da confraria “inteligente”, não entendi direito o que ele quis dizer com “cólicas existenciais”. Teria algo a ver com diarréia?
sábado, 12 de fevereiro de 2011
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