Quando a luz se apagou para sempre, o último homem sobre a face da terra ainda tentou uma sobrevida com sua pequena lanterna mecânica, dessas que acendem a custa de freqüentes apertos de mão. Aquele fio luminoso bateu contra uma das poucas paredes em ruína e ele divisou um quadro – o retrato da mãe – e um velho mancebo coberto por um casaco de couro. Como provisão para os próximos minutos ou dias, tinha duas garrafas de água mineral, um lençol azul e uma pilha de jornais e revistas da semana anterior ao evento.
Recarregando a lanterna com esforços restantes, leu as notícias sobre a iminente catástrofe planetária e um infográfico a respeito daquele pedregulho do tamanho de Sergipe que se aproximava da Terra. Tudo foi grandioso: o estrondo, a poeira que cobriu o Planeta e, em segundos, somente a sensação de estar só em seu cantinho escuro. Quais as providências nessa hora implacável: um gole d’água, um oração, um grito? Não importava. Optou pela continuação da leitura dos impressos para entender porque as pessoas foram tão frias e indiferentes diante do inevitável. As notas oficiais das autoridades, por exemplo, tinham a mesma carga emocional de uma portaria do banco Central. As religiões trataram o caso como um desígnio de Deus e estamos conversados, enquanto a ciência alegou falta de tempo hábil para alguma providência eficaz.
A vida seguiu seu curso. Os campeonatos regionais não foram interrompidos e a política continuou com suas sessões plenárias e traições. A TV ocupou-se bastante do caso, mas novelas e sitcoms não foram suspensas. Houve a festa da primavera, concurso de misses, festivais de cinema, feiras literárias, seminários sobre boas práticas empresariais, lançamento de Iphone e anúncios de revolucionárias dietas de emagrecimento. Além, é claro, de mais uma temporada do Cirque Du Soleil na América Latina.
Notava-se enfado e cansaço em relação ao noticiário apocalíptico. Aquela pedra gigante, em rota de colisão, banalizou-se, embora já pudesse ser vista a olho nu, em noites estreladas. Mas não foram registrados sinais de melancolia ou desespero e ninguém caiu na esbórnia, como se o mundo fosse acabar amanhã ou logo mais – e iria acabar, conforme todos os cálculos das instituições científicas. Havia sempre a esperança de a rocha se estilhaçar na atmosfera e causar prejuízos de menor porte – tsunamis e terremotos – mas esse não era o ponto. O fato é que anúncio tornou-se chato e repetitivo, começou a perder força e até virou piada.
Apesar da má vontade dos leitores, o fim do mundo rendeu alguma arte. Duas bienais escolheram o tema, mas as instalações submeteram o juízo final às suas subjetividades - a ponto de expor a extinção da vida como mais uma mudança de rumo conceitual das artes plásticas. Espaços vazios e páginas lotadas de interpretações nos cadernos de cultura.
Depois de certo tempo, só os canais a cabo produziam programas especiais e rodadas de debates sobre o corpo sólido cada vez mais próximo. Nessas ocasiões, astrônomos e ambientalistas se digladiavam, pois os defensores da natureza insistiam em culpar o homem pela deterioração do Planeta, mesmo que o perigo real estivesse vindo de bem longe. Num desses conclaves televisivos, um cético metido a engraçadinho lembrou que o seixo descomunal não escolheu a terra porque não reciclamos devidamente as nossas garrafas PET.
O homem já estava exausto de carregar manualmente a bateria da lanterna em seu precário bunker. Mesmo assim, prosseguiu com a leitura da nossa imprensa - dividida entre a crítica e o apoio ao governo. Divertiu-se com o ministro que lançou um planto quinquenal de desenvolvimento quando o bagulhão já estava quase do tamanho da Lua. Na coluna social, Elisinha Proença Gouveia anunciava seu enésimo casamento justamente para o dia do “evento” (o pessoal do marketing usou o termo, disseminado pela imprensa, para evitar o clima de baixo astral associado a expressões como “hecatombe” ou “Armageddon”).
Enfim, quando ocorreu o evento ninguém contava em sobreviver. Nem o homem da lanterna, que agora tentava entender o fim de tudo a partir do noticiário das semanas passadas. Parecia tranqüilo, aconchegado em seu lençol azul, enquanto o céu ardia em fogo. Só lamentava a falta de um maço de cigarros, com o qual aquela leitura terminal se tornaria bem mais fluída e agradável.
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Um comentário:
Lula,
adorei " O Evento".
Abs,
Cris
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