Um dos riscos da criação de personagens é a criatura já existir, de fato ou de ficção. Nossa sã e malsã consciência às vezes constrói personalidades baseadas – baseadas até demais – em figuras de outros livros, pessoas conhecidas ou parentes. Ele, por exemplo, criou um doidinho enovelado por inimigos reais e imaginários, e só depois de colocar o sujeito na tela, já com uns 11 mil caracteres escritos, descobriu que se tratava do senhor Goliadkin, o conselheiro titular atormentado de “O Duplo”, de Dostoievski. Já a tentação de escrever sobre pais e mães também passa pela cabeça de quem se mete em literatura, seja num Best-seller mundial ou num blogspot.com. Muitos aceitam o chamado e jogam a família na roda, descontando nas palavras rancores de todos os tipos. Outros entram na embromação de inserir os defeitos dos progenitores – um nome muito feio, por sinal – em pessoinhas com nomes fictícios.
Os dois problemas são o suficiente por hoje, vamos nessa. O escritor russo pensou no senhor Goliadkin quando tinha apenas 24 anos. Só que isso foi em 1846. Ele, o jovem escritor, imaginou-o há um mês. Pense na decepção. Não era plágio, pois o escriba atual, em estado de prostrada depressão, nunca havia lido O Duplo. Sacou quase a mesma coisa, mas com 165 anos de atraso. A primeira sensação que teve: todos os personagens já foram criados, não adianta mais, tchau. Com o tempo – duas horas, se muito – estava catando uma justificativa para a coincidência e chegou ao veredicto: mesmo lá atrás, aconteciam essas coisas. Freud, por exemplo, sempre gostava de citar Arthur Schnitzler, como seu escritor de cabeceira, mas havia mesmo tirado do senhor Goliadkin inspiração para escrever “Das Unheimliche” (1919). É ele, o jovem escritor, que lança tais suspeitas sobre o duplo e o pai da psicanálise - não eu.
Nosso personagem - o jovem escritor, não Freud – também ponderou que todas as histórias derivam das peças de Shakespeare, mas isso também não é um pensamento original, como não é original afirmar que o referido autor - Shakespeare, não o jovem escritor – bebeu na mitologia e de lá extraiu quase tudo. Então, nessa toada vamos indo, uns pegando as coisas dos outros e passando adiante. Só que tem um porém: para se contar a mesma história, existe a obrigação de contá-la bem, raciocina o jovem escritor.
Daí o jovem escritor começou a simpatizar com o seu Goliadkin, também provido de um duplo, e retomou a história. Está concorrendo com Dostoievski, mas tudo bem, vamos construir um similar nacional de alto nível, embrulhado num preâmbulo de bom tamanho para explicar que o livro é uma imensa citação do autor russo, e tal procedimento se enquadraria num esquema de transtradicionalização, se é que isso existe.
Toda essa pensata, como dizem nas revistas semanais, é para especular que nem sempre pode ser pecado escrever a mesma história. Se for bom de ler, vamos em frente. No caso de a versão não ser lá essas coisas, ainda resta explicações conceituais que, em alguns casos, resolvem o problema. Basta que a citação seja boa, tão boa que a faça bem melhor do que livro e ai o livro fica sendo a sua justificativa e não a história em si. Talvez isso seja uma tendência de certa literatura, pensa o jovem escritor, que também é um personagem manjadérrimo – um truque de segunda para ancorar as linhas acima.
domingo, 16 de outubro de 2011
Assinar:
Postar comentários (Atom)
2 comentários:
Adorei! Como sempre.
Obrigado, Teta. Também achei seu artigo de hoje muito legal Marchando para o Jardim de Infância
Postar um comentário