Esse homem ainda existe por ai, perdido num subúrbio remoto, alheio ao tempo que passa, com seus costumes mantidos, igual a antigamente. Cria passarinhos em gaiolas, tem uma corrente de ouro e joga no bicho. Três filhos. Um deles com curso técnico, outro no Exército e o mais novo entregue à cachaça. O emprego cabe a seu tipo, é despachante. Depois do almoço, sempre feito em casa pela mulher-silêncio – sua esposa há 30 anos -, senta na calçada. O palito de dentes volteando na boca e os olhos no movimento da rua. Tira uma soneca antes de voltar ao escritório, que fica no mesmo bairro.
A vida segue assim, como fora a de seus pais, e ali na sala estão o quadro da Santa Ceia, uma flâmula do time e fotos emolduradas da família. À noite, depois da janta, liga-se em programas populares da TV ou joga dominó com os amigos. Fuma Derby, usa bigodes e não sai sem o cortador unhas, anexado ao chaveiro.
No escritório, além de Vitorinha, a secretária, conta com um office-boy, ou melhor, um contínuo, o rapaz que faz as coisas, leva e trás, entra na fila do banco e faz a limpeza. Vitorinha é datilógrafa, nunca usou computador, nem o homem vê necessidade disso, pois tudo que interessa está no livro-caixa manuscrito, despesa e receita, e nos formulários em quatro vias, tiradas com papel carbono. O resto é reconhecimento de firma, fotocópias e autenticação de documentos. O trabalho de despachante não exige muita informática, exceto quando é preciso ir ao DETRAN e a outras repartições do Estado e do município. Mas ai é com eles.
Depois de muita luta, o filho que bebe ainda tentou algo na vida, curso de correspondência comercial, para ajudar o pai no serviço. Mas deixou pela metade. Por desinteresse, preguiça e más companhias. O homem só resmunga, dá o caso como perdido e entrega a Deus. Os outros, não, são motivo de orgulho. O que está no Exercito e serve fora da cidade mande-lhe cartas ou telefona. Em casa, o aparelho é daqueles cor de abacate, com disco e bordinha branca no bocal. Mas o homem tem um celular, dos mais simples e pré-pago, que usa no cinturão, como um revólver. Ligar e receber ligações são o suficiente. Não tem e-mail.
Quando está emburrado ou triste, recolhe-se para ouvir seus discos, a coleção quase completa de Nelson Gonçalves, pela RCA Victor, ou Jorge Veiga – “Amor não tem idade” e outros sucessos, que provocam imensa saudade do rádio, onde o próprio cantor sempre repetia: “Alô, alô, aviadores que cruzam os céus do Brasil. Aqui fala Jorge Veiga pela Rádio Nacional. Queiram dar os seus prefixos para a guia de nossas aeronaves”.
O homem não sabe que tem uma estratégia contra o passar do tempo: não deixar que ele passe; mantém-se lá atrás, apegado à moda da juventude, quando vivia de verdade. Agora recordar é viver, nostalgia não tem idade, serestas, seleção de 58 e Emulsão Scott - hoje tão raro nas farmácias. Não há muito que fazer. Apenas deixa os discos tocarem na vitrola Telefunken, modelo Dominante, comprada em 65. Às vezes prefere o silêncio. Então, fica olhando o estranho mundo lá fora, sentado na calçada, palitando os dentes.
quarta-feira, 12 de outubro de 2011
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