segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Incompetência

Ele está diante do que não sabe fazer e mesmo assim assume a tarefa. Coisas de entrevista de emprego: mentir sobre habilidades e experiências. Mas ele disse “eu faço” e o trabalho era matar uma pessoa. Já tentou tudo no mercado formal e informal, vendeu o que tinha, tentou passar um dos rins adiante, caiu no alcoolismo, recuperou-se nem Deus sabe como, e agora pega esse job macabro, disposto a tirar a vida de um ser humano.

Para um ganhador do Prêmio Juriti, ex-escritor famoso caído no esquecimento, talvez a experiência rendesse pelo menos algum sentimento para uso literário. Remorso e culpa são comuns nesses casos. Indiferença, ainda melhor (pensou em O Estrangeiro), e uma temporada na cadeia, como última alternativa, poderia resultar num livro de memórias. O importante, no entanto, era tocar o serviço com eficiência, pois na fase atual a falta de dinheiro é mais dramática do que o branco criativo.

Naquele covil de assassinos de aluguel não havia espaço e tempo para reflexão mais refinada. Era pegar ou largar. Saiu de lá com metade da grana, uma 45 em bom estado e informações sobre o alvo. Tinha uma semana para concretizar o negócio e voltar para receber o resto. Sumiria por uns tempos, numa casa de praia, e ali talvez saísse um livro alegórico sobre o assassinato. A princípio tratou o caso à luz da sobrevivência da espécie. “Se não mato, morro”. Os caras queriam uma prova, de preferência a cabeça, mas ele os convenceu com a promessa de enviar um vídeo.

O problema era matar sem ódio, embora seu objetivo fosse um criminoso. Não era um desses boçais defensores da justiça com as próprias mãos. Era contra a pena de morte, já escreveu sobre ética, mas o mundo do trabalho fora ingrato demais com ele e bastava tratar a vítima como parte dessa conspiração invisível contra sua vida profissional. Além disso, vale considerar, vive num mundo em que textos não valem nada. “Eu poderia estar ai, escrevendo, mas não, estou matando gente com tiro na cabeça”. Achou essa piadinha engraçada, consolou-se com a inversão de valores. Durou pouco.

Logo estava de volta com um sentimento que abate todos os outros: a vaidade. Mata, escreve um livro e é preso. O risco existe. Nesse caso o sucesso de público certamente virá acrescido de senões morais capazes de inviabilizar uma alegre noite de autógrafos. As mulheres ficarão assustadas e mesmo uma obra-prima seguirá para a posteridade como o romance do assassino. Caso ninguém descubra, o drama persistirá em sua alma pacífica e não haverá prazer na hora dos elogios. Desistir do livro, matar unicamente pelo dinheiro, seria barbárie demais.

Então, voltou para devolver o adiantamento e a arma. Prometeu ficar em silêncio sobre a natureza do acordo e saiu de lá sem saber o que sentia: alívio ou frustração. Andando sem rumo pela rua deserta, ouviu, ao fundo, quase numa alucinação, a voz repreensiva da mãe: “você sempre deixa as coisas pela metade”.

Nenhum comentário:

Postar um comentário