Nestas malfadadas linhas segue o que me vem à cabeça sobre o dia de ontem e outras coisas. Imagens enoveladas mostram minha passagem por uma blitz da polícia. Teste do bafômetro. Só tem um porém. Não bebo, não dirijo nem tenho carro. Não saí de casa e acordei em casa. Se saí, não há vestígios. As chaves estão na fechadura e, por isso, deduzo que estive aqui desde a tarde passada. Caso tivesse saído elas estariam em cima da mesa. Nesse ponto sou metódico. Tudo nos mesmos lugares, o banheiro limpo, a cama desforrada e a estante de livros apenas com uma folga - o exemplar dos Melhores Contos de Loucura, organizado por Flávio Moreira da Costa (Ediouro), foi tirado do lugar. A intenção não é fazer mistério; é esclarecer logo o que aconteceu. Eu não sei.
Da cozinha vem uma voz feminina. Um grande susto e, logo em seguida, uma grande surpresa: Sonia, uma russa, estudante de artes, conta o que sabe num português impecável. Não é muito: “Eu tava embriagada, você me trouxe pra dormir aqui. Fui roubada”. Trouxe como? Ela diz, “de táxi”. De onde? Ela responde: “Não sei”. Lembra-se vagamente da blitz e do bafômetro. Mas foi o motorista do táxi que se submeteu ao teste. Estava bêbado e foi preso. “Pegamos outro táxi e estou aqui”, resume a Sonia russa, preparando o café e cheia de intimidades comigo. Só depois de muito custo recobrei uns dados da memória e Sonia não me pareceu estranha. Isso! Nasceu em Moscou e foi criada no Rio, na Lapa. O pai é mágico. Estive com ela há um ano, rapidamente, numa loja especializada em realismo socialista para decoração de ambientes. Sonia se interessou por um abajour com desenho de Lênin e um exemplar amarelado de Ilya Ehrenburg. Conversamos sobre suas preferências por uns dois minutos. Deu tempo de perceber que poderia ser superficialmente classificada como uma esquerdista pop, anti-soviética, ligada a movimentos de novos teóricos marxistas. Pensei numa frase boa, impressionável e fina, para dizer naquela hora, mas não veio. Era tão distante a agora se comporta com intimidade demais aqui na cozinha. Talvez seja o jeito dela. Talvez eu a tenha encontrado outras vezes e tenha esquecido. Afinal, estamos falando de amnésia.
Um parágrafo enorme e nenhuma informação relevante. Temos uma Sonia russa, táxis e blitz. Falta o principal. Como e por que sai de casa? Como encontrei a estudantes de Belas Artes e por que a trouxe para casa? Houve algo entre nós? Não tive coragem de entrar nesses detalhes últimos, mas a moça esclareceu: “não houve nada, viu. Dormi no sofá”. Para prosseguir, sem saber como termina a historia, comecei a desconfiar da russa. Ela esconde algum segredo. Como nos conhecemos, antes dos táxis, e por que esse lapso de memória? Ela jura que não sabe. Nem eu.
Escrever durante o processo tem suas vantagens e desvantagens. A russa ainda está em casa, isso é bom, e posso submetê-la a um interrogatório mais duro. Calma, é só uma maneira de dizer. Até que é gostosa, a filha da mãe, e está muito tranqüila para quem não sabe onde estávamos ontem à noite. Tudo está muito parecido com o argumento de um filme que escrevi e foi recusado. Complicado e ruim, junção perfeita, negócio de quem tem pretensões de fazer uma obra-prima. Deixa pra lá. Nisso, a russa começou a mexer nos livros, e então me pergunto: foi ela que estava lendo os contos de loucura? Foi ela que me trouxe para casa? Se eu não encontrar uma resposta, uma explicação, o texto vai para o lixo. Preciso de ajuda. A russa não pode ajudar mais, desconfio dela, então recorro aos motoristas de táxi, ao preso e ao solto. Ligo para a empresa, e depois de alguma música no pé do ouvido, mais música, música de empresa de táxi, o pior repertório do mundo. E telefone não é lugar para ouvir música.
Bom. Finalmente sou atendido, depois de discar de um lugar para outro, e agora a moça informa que, de fato, eu e a russa estivemos em dois táxis da companhia, conforme disseram os motoristas, o preso e o solto, e passamos mesmo pelo incidente do bafômetro. Não tenho porque desconfiar de ninguém, pelo menos não deveria, ou deveria, não sei. Tem ainda a telefonista. Não haverá mais telefonista.
Eu e a Russa, no táxi, tanto no primeiro quanto no segundo, estávamos numa animada e fluente conversa sobre tudo que você possa imaginar. Em russo, segundo os motoristas. Eu não falo russo, que é isso? Ou é só paranóia? O fato é que não sei como saí de casa. Quero saber os detalhes, como a aparição de Sonia nessa (ou nesta?) história. Uma Sônia russa, com jeitinho carioca, uma beleza.
O apagão de memória que tive é muito estranho e por isso passei a procurar pistas dentro da casa, como nas séries policiais americanas, e deparei com um DVD, sem nada escrito nele. Liguei o aparelho, coloquei o disco e estava lá, documentado, o período que passei afastado deste mundo. Um Back-up do Black-out. Tudo ou só uma parte? Não sei. Mais uma pergunta: quem fez o vídeo? Resposta: provavelmente eu. No vídeo aparecia a minha voz, nos bastidores, e a única no set, apenas de calcinha, era Sonia, a russa. Bastava mandá-la fazer tal coisa e ela fazia. Estava ali a presumível culpada e o DVD mostrará em seguida o desaparecimento da minha voz. Só que o enredo prossegue, com ela agora na direção, me dando ordem para certos procedimentos em seu corpo. O resto é o que se vê em filmes do gênero, mas estou ali ausente, como autômato, em cima de Sonia, a russa, pensando estar numa blitz da policia, pensamento mais nítido do que o vídeo, isso na minha cabeça, claro.
Sonia não se lembra de nada. Nem mostrei o vídeo, com vergonha, mas contei a história, cheio de cuidados para não cair na vulgaridade. Não citei que havia pornografia, preferi “cenas íntimas” e ela, toda despachada, disse “quero ver”. Viu. Ficou assustada, agitou os braços sem palavras e disse com uma ênfase danada: “esta não sou eu”.
Não se tem registro de um caso de amnésia acometendo duas pessoas ao mesmo tempo, um brasileiro e uma russa, especialmente quando se olha o vídeo. Somos nós dois lá. Ou não? Por isso, liguei a um amigo psicanalista, ex-lacaniano, para saber se seria possível perder a memória por causa de sexo. Antes, durante ou depois. Ele disse não ou pelo menos não conhecia (eu poderia embarcar nessa para explicar a história. Não deu).
Nesse ponto, no momento em que a russa diz que aquela não é ela e continuo sem lembrar-me de nada, inclusive se eu sou eu, ocorre uma situação bem conhecida de quem deseja inventar uma história. Uma encruzilhada, onde você tem possibilidades, ou um beco sem saída, como é o presente caso. E daí? Aconteceu o que com a russa e comigo?”“. Eu não sei. Não tenho a menor ideia. Alguém sabe?
terça-feira, 21 de fevereiro de 2012
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