Por Homero Fonseca
Dias desses, zapeando pelos canais da TV por assinatura, esbarro numa porção de pastores aos berros, vendendo curas, salvação eterna e sucesso imediato. É realmente chocante o espetáculo de fé e charlatanismo desses programas. “Cretinos! Explorando a ingenuidade popular!” – pensei com meus botões, fazendo coro à opinião mais ou menos generalizada. Que, aliás, tem sua razão de ser: afinal, todo o Brasil assistiu aos vídeos daquele pessoal de Edir Macedo arrecadando sacos de dinheiros ou a gravação clandestina de um pastor ensinando como extorquir os fiéis. Ô povinho besta, não é?
De repente, um corte no tempo: vem-me à cabeça uma cena que presenciei há mais de 20 anos no Alto José do Pinho, Recife. Era um domingo, fim de tarde. Eu ia levar em casa a babá de minha filha mais nova, que fizera extra naquele dia por conta de uma festinha de aniversário da pirralha. O que vejo? O morro dividido em dois.
De um lado: homens maltrapilhos, de olhos injetados, tomando cachaça em barracas sórdidas, ouvindo, impávidos, as estridentes imprecações das mulheres, reclamando que faltava o leite dos meninos em casa; rapazes de bermudas e camisetas-regata surradas, olhos mais injetados ainda (o crack não tinha se generalizado), olhando fixamente um bando de cachorras que dançavam ao som de uma música altíssima, rebolando sorridentes em seus minúsculos shortes. A um canto, um tuberculoso vomitava sangue, observado por um cão sarnento.
De outro lado: homens e mulheres, em roupas domingueiras, tomados banho e penteados (elas de longas tranças), desciam o morro, altivos, carregando nos braços um troféu resplandecente, a indefectível Bíblia Sagrada. Andavam em grupos orgulhosos, passando ao largo da miséria ao redor, estuantes de autoestima. De alguma forma e em certa medida, eles saltavam do lúmpen para a cidadania. Percebi, de estalo, o excelente negócio que a gente pobre faz ao converter-se a um culto evangélico, para além da charlatanice ou seriedade de pastores, pois os há sérios e dignos, representantes de cultos institucionalizados há séculos.
Façamos uma conta, por cima: ao se tornar evangélico, um trabalhador despende rigorosamente 10% dos seus ganhos (o dízimo) com a igreja e para de gastar com cachaça, jogo, mafuás, puteiros, futebol, loteria, remédios... Melhora sua empregabilidade: primeiro, porque, ao abandonar a bebida, diminui o absenteísmo ao trabalho; segundo porque a comunidade cria uma cadeia de solidariedade dando preferência a empregar os irmãos. Isso, do ponto vista estritamente econômico. Somem-se mais os ganhos intangíveis mas importantíssimos, como o consolo da fé, a percepção de pertencimento a um grupo distinguido, a estabilização do núcleo familiar, o distanciamento do mundo do crime pelos jovens. Me convenço de que, independentemente da ação ideológica e exploratória dos pastores gananciosos, as vantagens estritamente econômicas e também as psicossociológicas compensam o dízimo!
Bom, isso são apenas observações não sistemáticas, mas acho que sociólogos e economistas podem aprofundar essa questão.
Sei que há muito mais coisas em jogo, a realidade é bem complexa etc. Mas quando vejo um católico torcendo o nariz para essa gente, penso na antiga venda de indulgências, nas suntuosidades vaticanas e no conluio histórico de padres e bispos com os ricos e poderosos (fora, claro, da turma da Teologia da Libertação, minoritária e radical que, por excessiva politização não conseguiu, grosso modo, falar a língua do povo, excetuando-se a arregimentação de líderes rurais para o MST e urbanos para o PT, o que não é pouco!).
A propósito, em conversa recente com a socióloga Teresa Sales, autora de surpreendente pesquisa sobre brasileiros que emigraram para os States em busca de dias melhores, ela me contou o seguinte fato: quando as brasileiras, após uma década ou mais ralando como diaristas nos lares americanos, contabilizam que juntaram dinheiro suficiente para voltar à terrinha, elas costumam vender a carteira de clientes a uma novata que seguiu o mesmo caminho. Os padres costumam condenar essa atitude capitalista, em nome de uma abstrata solidariedade. Já os pastores, weberianamente, estimulam a prática. Quem vocês acham que ganham mais espaço entre os emigrados?
Last, but not least: somente agora, cavoucando o assunto, tomei conhecimento do trabalho Igreja, política e religião, do sociólogo Renato Carneiro Campos, editado pelo então Instituto Joaquim Nabuco, em 1967. Na pesquisa entre trabalhadores da monocultura da cana-de-açúcar, ele já registrava o avanço dos evangélicos nas comunidades pobres, constatando:
“As nossas entrevistas com trabalhadores indicaram (...) a transformação no modo de proceder dos convertidos: tornam-se bons trabalhadores, evitam os estados de mancebia, abandonam os vícios (fumar, beber, jogar). Preocupam-se em agir corretamente pra dar bons exemplos aos companheiros. (...) Não há de se negar, portanto, as influências benéficas do protestantismo junto aos trabalhadores do ponto de vista da integração social, encaminhando-os para uma vida limpa de vícios. A Bíblia se transforma num verdadeiro código. Melhoram as suas condições econômicas como uma decorrência dos atos de poupança [grifo meu].” Ele realça ainda que motivado pelo fascínio da leitura dos textos sagrados, o protestantismo exerce função alfabetizadora.
sábado, 21 de abril de 2012
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