As situações humanas mais absurdas já foram
ditas, escritas, reescritas, plagiadas, filmadas e refilmadas. Não sobrou um
único assunto inédito, denso e forte para minha estreia na literatura e cá
estou, com meu novo romance, baseado em fatos irreais, salpicados com
influências várias, cheio de citações inteligentes e fina ironia também
transplantada. Citações de outros autores, histórias de outros livros, coisas
acontecidas com terceiros. Apenas juntei tudo com jeito, embaralhei
personagens, adulterei cenas, transformei verdades em mentiras e vice-versa. Agora
dou oficinas literárias. Sugiro cinco livros. Os participantes constroem um
texto inspirado nessas leituras, sem esquecer a sutil identificação do escritor
e personagens utilizados.
Coube à melhor aluna da minha oficina o
encargo de iniciar o exercício de inverossimilhança proposital: transportar
Madame Bovary para Os sertões de
Euclides da Cunha. A menina escreveu bonitinho sobre a destacada senhora, e obviamente
ela, dona Emma, detestou aquele arraial, achou “le comble de l'horreur”, mas de
repente a história empacou. A madame refletiu um pouco sobre a aturdida turba
de Conselheiro (a conjunção dessas palavras é deliberada) e depois se perdeu no
vasto semi-árido baiano sem deixar vestígios. Outra aluna – só há mulheres na
sala – encarregou-se de encontrar a deslocada Emma e repô-la em outro romance,
mais confortável e francês. Aliviada, Mme. desembarcou em Proust, Em Busca do
Tempo Perdido. Fora resgatada por modernistas brasileiros e despachada via
Porto de Santos. “Aquela alma incomum, apesar do gosto pela transgressão, não
tinha escopo para as raízes do Brasil”, escreveu a terceira garota, socióloga,
blogueira e gata.
Não sei por que, mas as alunas só importam
personagens. Nenhum dos nossos viaja para romances russos ou franceses. Em um
dos textos, assinado pela quarta e última aluna, Hans Castorp troca o sanatório
suíço de A Montanha Mágica pelos ares
de Campos do Jordão. O tratamento no Berghof não dera certo e o digressivo Hans
jogava a última ficha na suíça brasileira, ao lado de Nelson Rodrigues e Manuel
Bandeira - um trio unido pela tuberculose. A partir daí, a querida oficineira
se perdeu. Soltou os personagens de Nelson pelos corredores, canalhas e contínuos,
e encheu o ambiente de “febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos”
(Bandeira, Pneumotórax). Hans Castorp
não deu bola – continuou tossindo e pensando na República de Weimar.
Por essas e outras o trabalho ma oficina
tem sido mais divertido do que escrever livros. Nada é levado a sério e o
sucesso das aulas talvez venha daí. As garotas da Somaterapia são bem-vindas,
chegam na semana que vem, e a nós também se juntarão duas senhoras da
sociedade.
Hoje tem espetáculo. Há uma forte
influência do teatro nos textos das meninas. Chamam diálogos de falas e se
alegram com o mix de personagens dos livros indicados sem se preocupar com a
lógica. O final é quase sempre carnavalesco e erótico e olha que nenhuma estudou
com o Zé Celso. Não desaprovo quando aparecem as criações coletivas bem
doidinhas, supostamente baseadas em minhas instruções. Numa delas, Romeu e
Julieta se casam, fogem para o Brasil e vão morar no romance de Machado, na
mesma rua de Bentinho e Capitu. Viram amigos e aderem ao suingue.
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