Estava sem dinheiro e pedi vinte paus
emprestados. Deu só pro maço de cigarros e duas cervejas. Acabou. Ainda bem que
entrei de graça na festa porque eu era convidado vip. Quase todo mundo me
imagina rico ou remediado. Quase ninguém sabe que padeço da falta de dinheiro, falta
crônica e grave, pois ganho apenas R$ 1,2 mil, divido o apartamento com uma galera e não ando
de táxi. Mesmo assim, eu sou famoso.
A festa estava animada, todo mundo
conhecido, e quem não me conhecia pessoalmente, só de ouvir falar, queria
conhecer. “Você é o Lara?”, sempre perguntam. Tem muita gente assim, parecida
comigo - é celebridade num determinado mundinho sem nunca ter saído no jornal.
Só blogs e no boca a boca. Espalham, e eu gosto, histórias sobre minha vida e
minha obra e elas terminam propiciando situações engraçadas. Outro dia, num
bar, ouvi um sujeito se gabando de ser meu amigo íntimo. Nunca fui descrito com
tantos detalhes. Dada a precisão do desconhecido, fiquei escutando a conversa,
interessado, não estraguei a dele. Aliás, pouco tempo depois entrei no papo,
contei que também conhecia o Lara, um cara legal, inteligente, fino, artista
dos bons, grande conhecedor da alma humana, conquistador de mulheres inesquecíveis,
o ban-ban-ban da zona etc. Eu sobre mim mesmo para um amigo do peito
completamente estranho.
Sempre me chamam para almoços e jantares.
Na hora de pagar a conta é um suplício. Um monte de cartões de crédito em cima
da mesa. Jogo o meu, de débito, e espero pelo esperado. Não tem saldo. As
maquininhas, no entanto, são discretas, acusam apenas falta de conexão com
minha agência ou coisa parecida. Nenhum puto, eu sei, e todos pulam para resolver
o problema, com certa satisfação. Outras vezes faço cena, “porra, esqueci a
carteira”, sem dramas, acreditam. “O Lara é desligado”, dizem. “Artistas são
assim mesmo”, acrescentam. Magnólia, minha namorada, sabe dessas agruras. Atua
com intensa cumplicidade. Também vive dura. É produtora free-lancer. Nessas ocasiões,
a coitada mente, “obrigada, já comi”. Depois, vamos os dois à padaria, e ali
Magnólia devora um misto quente. Não reclama. O ketchup escorre pelos cantos da
boca e ela me olha, com admiração. “Gosto tanto de você”, diz, ainda mastigando
o sanduíche.
Meus trabalhos saem na brodagem. O primeiro
filme foi assim, um curta, com equipamento emprestado, atores amigos, e Magnólia
na produção. Também escrevo roteiros para quadrinhos, fanzines, e dou
expediente na agência, uma agência pobre e legal. Às quatro nos reunimos no terraço para fumar
um e até o dono vai. O dono é quase tão pobre quanto eu. Pensa que estou na
agência por hobby, pois conheço gente importante, poderia ser diretor de criação
num lugar melhor, com salário de gente.
Só os mais chegados viram meu filme, a
maior parte integrante do cast, como a belíssima atriz Maria Isabela. Quase
fiquei com ela. Não quis trair Magnólia e por isso não fiquei. Mulheres não são
interesseiras, pelo menos as que conheço. Há as que têm atração por homens sem
dinheiro. Basta ser engraçado, espirituoso, bacana. No meu caso, há o acréscimo
da fama - semifama, que seja. Antes de Magnólia, peguei quase todas, embora eu
não seja um exemplo de beleza masculina. Curioso, isso.
Algumas raras vezes, minha amiga Etiene, a
rainha dos malabares, coisinha linda, pergunta por que não arranjo um bom
emprego. Teria competência e currículo para estar numa multinacional, brigando
no mercado, competindo com colegas escrotos, dando rasteiras por cargos, usando
paletó e gravata. A mesma conversa do dono da agência. Respondo com clichês e
mais clichês, pensando em Magnólia, correndo para abraçá-la, fungando em seu
cangote, que tem cheiro de sexo por fazer.
De vez em quando não sei lidar com a
intensa felicidade do reconhecimento, a acolhida deste pequeno público cativo do
bairro, desses pequenos círculos de outras cidades ou dos botecos ainda
freqüentáveis. Vem um nó na garganta, muita ansiedade, a obrigação de dar um
retorno, em forma de espírito leve, jeito desdenhoso e frases de efeito. O
cara, além de gênio, é legal, devem pensar de mim, assim eu acho, e sempre ao
lembrar-me disso sinto um estranho deslocamento nos ambientes em que reino
absoluto.
Então saio para o âmbito da cidade enorme,
perco-me na nas ruas como anônimo, mas o horror de não ver rostos conhecidos e,
mais, não ser reconhecido - “olha o Lara”, ninguém diz -, me leva de volta ao
seio da pequena fama, onde estão Etiene, a grega dona da pensão Contrastes, o
ativista da Internet, as meninas do curso de comunicação, o velho Falcão e
principalmente Magnólia.
2 comentários:
como sempre, gosto de suas crônicas... essa está muito boa. dá até para imaginar as figuras e cenários... bjs
incrível o texto, uma das melhores coisas que li. :)
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