segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Edifícios duros, mulheres macias e a cidade sem lei


Arquitetura e mulheres são as duas coisas mais interessantes que uma cidade pode oferecer ao visitante era o que anunciava o estranho cartaz pregado na estação, logo na chegada, alardeando a fama do município nesses dois itens, mulheres e arquitetura. Pode parecer mentira descer do trem e em seguida encontrar a poucos metros dos trilhos um manancial de cintilantes damas, jovens e mais velhas, todas elegantes, vestidas para uma festa, só que era um dia comum e elas sempre foram assim, como se estivessem num filme. Mais na frente, diante do táxi, ele também divisou os prédios, representando estilos de diversas eras arquitetônicas, com destaque para o que antigamente chamávamos de pós-moderno.

A primeira impressão persistiu por décadas. Edifícios duros, mulheres macias, céu azul, temperatura agradável, mas faltava algo, tinha certeza, era a própria cidade, faltando a si mesma, enfim, um ambiente falso. Ele chegou a pensar num cenário. Não seria tudo aquilo um imenso tapume desenhado, em 3D, iludindo os sentidos? Estava em seu destino, não sabia se de fato ou de alucinação, mas estava. Saiu da província natal por que estava difícil ficar num lugar onde algumas pessoas levam em conta a possibilidade de o judiciário ser injusto com elas. Muitos, no entanto, permaneceram lá. O comportamento desses animais acuados é feio, reticente, e diante de um enviado da majestade, agem num misto de intranquilidade e subserviência. Ele não aceitou aquilo, foi embora.

Mas estava estranho, sempre foi, e embora fosse estranho ele persistiu na Cidade das Mulheres por mais uns dias, e depois anos, sempre sentindo falta de alguma coisa – e excesso de outras. A comida contemporânea embalada a vácuo, por exemplo, quase não tinha gosto. O tempo passou rápido demais, meses pareciam semanas, e ele envelheceu sem conhecer direito as beldades desta terra e sem saber explicar porque elas se parecem tanto umas com as outras, do jeito de falar ao jeito de serem belas, tornando a própria beleza uma situação permanente e, com o passar dos dias, absolutamente tediosa.

Alguém a esperar um fecho e ele continuou perdido em sensações desagradáveis num universo desejado por uns setenta por cento da população masculina economicamente ativa. Havia homens, mas invisíveis, às vezes como nas cidades invisíveis. Eram insignificantes, coadjuvantes das mulheres mais lindas e frias do Planeta. Todas agiam como eficientes funcionárias, imperturbáveis com ensaiada amabilidade.

- O que o senhor deseja? – perguntavam sempre e reagiam sem espanto se ele dissesse, por exemplo, “sexo”. Imediatamente tudo seria providenciado, num esquema drive thru, e o novo morador poderia escolher qualquer uma delas, classificadas por tipo físico, especialidade e QI. No princípio teve espasmos feministas, não era possível uma mulher submeter-se a tamanha degradação. Com o tempo, no entanto, descobriu que os modos e costumes locais em nada se assemelhavam à antiga prostituição, não havia um drama moral envolvido com o serviço de sexo, pelo contrário, era uma vocação municipal, um negócio a disputar seu espaço com a arquitetura, também exercida por mulheres. Ele gostava das tenistas, uma fantasia antiga, mais pelas saínhas, subindo nos saques, coxa acima, porque o jogo em si ele achava chato. Até das tenistas ele enjoou. Também enjoou da permanente construção de novos prédios envidraçados e cheios de referências.

O arquiteto em seu delírio – sim, claro, ele é arquiteto – fazia flexões de dia e reflexões à noite, levando o quase sempre a pensar em sexo e arquitetura e o porquê de ter se enfastiado das duas razões de sua vida. Desejo por sexo não se sacia, nunca, e por isso a natureza dá um jeito de enfraquecer o sujeito na velhice para tentar aplacar a vontade. Ocorre que o cérebro do arquiteto, mesmo no final da vida, era povoado das mais intensas sensações de cunho sexual. Também estavam lá os edifícios que planejou e nunca foram construídos, ou seja, a paisagem lá fora era igual à paisagem interna. Poderia, neste caso, estar apenas pensando, sonhando ou alucinado por um segundo efeito retardado de todas as drogas que usou durante mais de 40 anos.

Não era provável. Seu passado, com fotos e poucos amigos, estava registrado nas duas cidades: a cidade sem lei, onde nasceu, e a das mulheres, onde se encontra, há muitos anos. Não compreendia porque rabiscou tantas plantas e só surgiam edificações desenhadas pelas arquitetas e por que recebia um alto salário para ver sua produção jogada no lixo. Havia conforto, dinheiro e saúde. O que faltava? Faltava alguma referência mais sólida de outros séculos, um prédio não reciclado, autêntico, como o Martinelli. No âmbito dos excessos, só aquela art decó misturada com futurismo, branco em toda parte e uma assepsia danada. Faltava ainda vida num sentido que ele só conhecera em sua cidade sem lei, na época que tinha alguma, onde cada dia era diferente, mesmo em relação às edificações e às mulheres.

Deu saudades da menina de mini-saia jeans e alpargatas, arrastando-se na praia, vendo a lua, conversando sobre coisas sobre as quais ele discordava, mas dizia que concordava porque ela falava de uma maneira muito linda, muito doce. Depois umas cervejinhas, a fuga para o apartamento de uma amiga, a noite mais bacana do mundo, cheia de aventuras e palpitações. Imagens e sensações retornando, aos poucos: a luz incidindo sobre ruas sem calçamento, o cheiro de suor de moreninhas brejeiras, maresia, casarões do século XIX, frutas tropicais, potes de doce...  

Aí ele acordou na cidade sem lei, mas tudo tinha acontecido de verdade.


Nenhum comentário:

Postar um comentário