Arquitetura
e mulheres são as duas coisas mais interessantes que uma cidade pode oferecer
ao visitante era o que anunciava o estranho cartaz pregado na estação, logo na
chegada, alardeando a fama do município nesses dois itens, mulheres e
arquitetura. Pode parecer mentira descer do trem e em seguida encontrar a
poucos metros dos trilhos um manancial de cintilantes damas, jovens e mais
velhas, todas elegantes, vestidas para uma festa, só que era um dia comum e
elas sempre foram assim, como se estivessem num filme. Mais na frente, diante
do táxi, ele também divisou os prédios, representando estilos de diversas eras
arquitetônicas, com destaque para o que antigamente chamávamos de pós-moderno.
A
primeira impressão persistiu por décadas. Edifícios duros, mulheres macias, céu
azul, temperatura agradável, mas faltava algo, tinha certeza, era a própria
cidade, faltando a si mesma, enfim, um ambiente falso. Ele chegou a pensar num
cenário. Não seria tudo aquilo um imenso tapume desenhado, em 3D, iludindo os
sentidos? Estava em seu destino, não sabia se de fato ou de alucinação, mas
estava. Saiu da província natal por que estava difícil ficar num lugar onde
algumas pessoas levam em conta a possibilidade de o judiciário ser injusto com
elas. Muitos, no entanto, permaneceram lá. O comportamento desses animais
acuados é feio, reticente, e diante de um enviado da majestade, agem num misto
de intranquilidade e subserviência. Ele não aceitou aquilo, foi embora.
Mas
estava estranho, sempre foi, e embora fosse estranho ele persistiu na Cidade
das Mulheres por mais uns dias, e depois anos, sempre sentindo falta de alguma
coisa – e excesso de outras. A comida contemporânea embalada a vácuo, por
exemplo, quase não tinha gosto. O tempo passou rápido demais, meses pareciam
semanas, e ele envelheceu sem conhecer direito as beldades desta terra e sem
saber explicar porque elas se parecem tanto umas com as outras, do jeito de
falar ao jeito de serem belas, tornando a própria beleza uma situação
permanente e, com o passar dos dias, absolutamente tediosa.
Alguém
a esperar um fecho e ele continuou perdido em sensações desagradáveis num
universo desejado por uns setenta por cento da população masculina
economicamente ativa. Havia homens, mas invisíveis, às vezes como nas cidades
invisíveis. Eram insignificantes, coadjuvantes das mulheres mais lindas e frias
do Planeta. Todas agiam como eficientes funcionárias, imperturbáveis com
ensaiada amabilidade.
-
O que o senhor deseja? – perguntavam sempre e reagiam sem espanto se ele
dissesse, por exemplo, “sexo”. Imediatamente tudo seria providenciado, num
esquema drive thru, e o novo morador poderia escolher qualquer uma delas,
classificadas por tipo físico, especialidade e QI. No princípio teve espasmos
feministas, não era possível uma mulher submeter-se a tamanha degradação. Com o
tempo, no entanto, descobriu que os modos e costumes locais em nada se assemelhavam
à antiga prostituição, não havia um drama moral envolvido com o serviço de
sexo, pelo contrário, era uma vocação municipal, um negócio a disputar seu
espaço com a arquitetura, também exercida por mulheres. Ele gostava das
tenistas, uma fantasia antiga, mais pelas saínhas, subindo nos saques, coxa
acima, porque o jogo em si ele achava chato. Até das tenistas ele enjoou.
Também enjoou da permanente construção de novos prédios envidraçados e cheios
de referências.
O
arquiteto em seu delírio – sim, claro, ele é arquiteto – fazia flexões de dia e
reflexões à noite, levando o quase sempre a pensar em sexo e arquitetura e o
porquê de ter se enfastiado das duas razões de sua vida. Desejo por sexo não se
sacia, nunca, e por isso a natureza dá um jeito de enfraquecer o sujeito na
velhice para tentar aplacar a vontade. Ocorre que o cérebro do arquiteto, mesmo
no final da vida, era povoado das mais intensas sensações de cunho sexual.
Também estavam lá os edifícios que planejou e nunca foram construídos, ou seja,
a paisagem lá fora era igual à paisagem interna. Poderia, neste caso, estar
apenas pensando, sonhando ou alucinado por um segundo efeito retardado de todas
as drogas que usou durante mais de 40 anos.
Não
era provável. Seu passado, com fotos e poucos amigos, estava registrado nas
duas cidades: a cidade sem lei, onde nasceu, e a das mulheres, onde se
encontra, há muitos anos. Não compreendia porque rabiscou tantas plantas e só
surgiam edificações desenhadas pelas arquitetas e por que recebia um alto
salário para ver sua produção jogada no lixo. Havia conforto, dinheiro e saúde.
O que faltava? Faltava alguma referência mais sólida de outros séculos, um prédio
não reciclado, autêntico, como o Martinelli. No âmbito dos excessos, só aquela
art decó misturada com futurismo, branco em toda parte e uma assepsia danada.
Faltava ainda vida num sentido que ele só conhecera em sua cidade sem lei, na
época que tinha alguma, onde cada dia era diferente, mesmo em relação às
edificações e às mulheres.
Deu
saudades da menina de mini-saia jeans e alpargatas, arrastando-se na praia,
vendo a lua, conversando sobre coisas sobre as quais ele discordava, mas dizia
que concordava porque ela falava de uma maneira muito linda, muito doce. Depois
umas cervejinhas, a fuga para o apartamento de uma amiga, a noite mais bacana
do mundo, cheia de aventuras e palpitações. Imagens e sensações retornando, aos
poucos: a luz incidindo sobre ruas sem calçamento, o cheiro de suor de
moreninhas brejeiras, maresia, casarões do século XIX, frutas tropicais, potes
de doce...
Aí
ele acordou na cidade sem lei, mas tudo tinha acontecido de verdade.
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