Se de repente ele se visse confrontado com
explicações diferentes dos seus conceitos, com todas as evidências, mudaria de
lado na mesma hora, mas constrangido e a contragosto. Seria o caso de lhe
provarem a existência de um determinismo, um propósito em todos os atos humanos
e no movimento dos astros. Ele, um cético, cederia. Imediatamente iria atrás de
um modelito teórico, agora de cunho religioso, para enquadrar o problema do seu
jeito. O autor entraria em nova fase intelectual, sempre do lado da verdade, e
acima de tudo porque se uma coisa é assim, não há por que dizer que não é.
Então, diante de um acontecimento transcendental,
ele tentará uma adaptação a tudo aquilo, sem perder o principal, a razão. Apela
à razão para explicar a irracionalidade, não sabe se é possível, pois se lhe
aparece um fantasma, por exemplo, a própria memória, construída a partir de
conceitos racionais, perderá o sentido. Uma aporrinhação, sem dúvida. Toda
bibliografia irá embora e será substituída por situações que ele não domina. Cederia
para viver, mas viveria em posição secundária diante de pessoas que sempre
acreditaram nessas coisas.
A salvação viria pelo amor à forma e
descreveria o Paraíso recém-apresentado de um jeitinho seco, poucas palavras,
comparações capazes de resumir um parágrafo de paisagismos. Seria econômico na
forma, desprezando aquele conteúdo implausível, e cheio de clichês religiosos.
Sim, porque todos os delírios da religião estariam ao dispor, incluindo o
Paraíso, a vida eterna e o inferno, mas em seu texto sairia com outra sonoridade
e ritmo, sem enfeites, como se uma montanha cheia de cataratas fosse apenas uma
pedra molhada. Talvez convencesse os donos desses absurdos transformados em
realidade, ou coisa que o valha, que estava certo de seu modelo formal, embora
eles, os donos da verdade, sejam absolutos em conteúdo. O mundo, enfim, não era
como ele pensava. Está ali Deus, sentadinho em seu trono, para atestar que tudo
é exatamente igual à descrição dos livros sagrados, assim como também existe vida
depois da morte, no Éden ou nas fornalhas do Diabo.
Nunca acreditou nisso, e ainda conta com a
possibilidade de um sonho ou alucinação. Seria uma peça pregada pelo inconsciente?
Supondo um acontecimento de tal majestade, suas certezas serão pó, ultrapassadas,
e dessa maneira passará à Eternidade como um equívoco. Nesse canavial
metafísico, encontrará velhos amigos católicos, com cara solene e grave, sempre
repetindo “eu não disse?” Ainda aturdido, ele verá os anjos, e adiante, antigas
certezas a escorrer pelo Jordão ou outro curso d’água sagrado.
Chego aqui, com minhas explicações
circulares, certo de não ter sido claro sobre o personagem em questão.
Recapitulo, pois, alguns pontos acima, ou tento resumir, iniciativas pouco
aceitáveis neste mundo da escrita, ainda com risco de provocar a interrupção da
leitura. Adiante. As conjecturas de um cético confrontado com o sobrenatural
poderiam dar um romance católico. O autor, recém convertido por forca de
evidências, passa a descrever sua nova situação sob a linguagem típica de um
cético cínico, como o Ivan Lessa reportando uma viagem ao Reino dos Céus. Ele
permanece cético, de algum modo, cético na forma. Mesmo espantado, não quer um
texto derramado, laudatório, exclamativo. Não, basta a conversão, já deu, agora
é levar a vida diante de Deus, bem pertinho dele, como se estivesse com um novo
roomate.
Tudo que pensou e pensava se refere ao ato
de escrever, disse ele, em voz alta, diante do Senhor, e pouco importava se
estava errado, antes, se conseguisse reproduzir seus anos de erro de forma
atraente para o leitor. Ficção é ficção, não precisa se contentar com a nova
ordem provocada pela prova inelutável da existência de Deus. Usaria a realidade
como fantasia e seus tempos de incréu como realidade, e vice-versa, enveredando
pela literatura fantástica, mas com armas da boa prosa.
Ocorre que o novo mundo não trouxe grandes
surpresas. Com o tempo, passou a conviver com males terrenos, a indisposição
física junto à impaciência, cansaço e ansiedade, remédios de laboratórios,
quando poderia reivindicar um milagre.
O mundo revelado virou transtorno, e ali,
na frente do Senhor, ele entregou os pontos, embora tudo fosse ainda uma hipótese.
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