domingo, 14 de outubro de 2012

Roteiro



E ouvia na noite escura uma voz saliente no beco, chamando, vem cá, ele foi, e encontraria a mesma mulher de cinco anos atrás, bem diferente, olhar de olhos brilhantes no breu e só quando ela chegou perto do poste, a luz iluminou um vestido vermelho, curto, e a maquiagem pesada. Faz uns vinte anos que ela saiu para correr esses pontos da cidade, vendo a clientela ser reduzida à medida da ação do tempo no corpo. Ainda um sinal de antes, como o fim da perna, o mocotó, mas o rosto tinha sido bastante sacrificado pelas ruas.

Era a mais bela poeta do Recife, nos anos 80, e estava agora em outra atividade, em São Paulo, catando trocados para se manter de pé. Ela sempre imaginou a vida como um poema, mais precisamente o poema em que descrevia um caldo, quase um oceano formado por este caldo, cujo interior tinha traços e círculos. Cada traço era um problema e quando um deles se resolvia, por empenho dela ou por si próprio, curvava-se, formando um circulo. Em 2012 só havia traços de círculos desfeitos e novos traços chegando a cada dia. No poema, os traçinhos e círculos não eram vistos a olho nu – só no microscópio, como num exame de sangue.

Não era o primeiro encontro nessas condições. Há uns dez anos ele esteve com ela, por acaso, numa boate de stripers.  Comemorar o aniversário, com amigos, e de repente subiu ao palco a número cinco. Foi perfeita até ser percebida. Ele também se assustou, mas resolveu tirar proveito da cena, simplesmente deu um risinho cúmplice e logo, logo ela estava sentada à mesa, bastante envergonhada, tentando dar um traço artístico àquela mudança de vida tão brusca. “Quero experimentar tudo”, disse ela, informando que não deixara de escrever e o tema era um mundo inteiramente novo, consistentemente erótico, conforme sentenciou. Não deu muito certo. Ela terminou indo dormir com ele, e no quarto e sala ela derramou-se, chorou a noite inteira, com intervalos para beber.

Entre goles de vodka, recitaram poemas e prosas, diante da TV sem som e era mais ou menos assim o começo do roteiro, pois ele seguia, como terceira pessoa, os passos de Grahan Greene, seu ídolo, em o Terceiro Homem. Green achava difícil, senão impossível, construir uma história para um filme, com seu ambiente e atmosfera, sem conceber antes um livro, pois o ato inicial da criação em forma de roteiro poderia tornar o enredo muito enxuto e insípido. Então pensou num livro inteiro sobre ela, narrando o que aconteceu de fato e inventando outras partes.

História dividida em duas partes. O primeiro e o segundo encontro, sendo que o segundo, na sequência do filme, é o primeiro. Tempo passado, mas como se fosse presente. Ela está em casa com ele, bebendo vodka, chorando e recitando poemas. Vez por outra se justifica, ataca o sistema e diz que seus anos de prostituição não foram inteiramente perdidos

Já a primeira vez, que vale como última, a situação será diferente, não haverá mais desculpas, motivações, choro ou poemas. Ela o encontrará, sob a luz do poste, e apenas dirá, meio amarga, C'est la vie, e caso ele não se conforme, queira saber o que houve, ela repetirá, antes de sair de quadro,  C'est la vie. 

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