E ouvia na noite escura uma voz saliente no
beco, chamando, vem cá, ele foi, e encontraria a mesma mulher de cinco anos atrás,
bem diferente, olhar de olhos brilhantes no breu e só quando ela chegou perto
do poste, a luz iluminou um vestido vermelho, curto, e a maquiagem pesada. Faz
uns vinte anos que ela saiu para correr esses pontos da cidade, vendo a
clientela ser reduzida à medida da ação do tempo no corpo. Ainda um sinal de
antes, como o fim da perna, o mocotó, mas o rosto tinha sido bastante
sacrificado pelas ruas.
Era a mais bela poeta do Recife, nos anos
80, e estava agora em outra atividade, em São Paulo, catando trocados para se
manter de pé. Ela sempre imaginou a vida como um poema, mais precisamente o
poema em que descrevia um caldo, quase um oceano formado por este caldo, cujo
interior tinha traços e círculos. Cada traço era um problema e quando um deles
se resolvia, por empenho dela ou por si próprio, curvava-se, formando um
circulo. Em 2012 só havia traços de círculos desfeitos e novos traços chegando
a cada dia. No poema, os traçinhos e círculos não eram vistos a olho nu – só no
microscópio, como num exame de sangue.
Não era o primeiro encontro nessas
condições. Há uns dez anos ele esteve com ela, por acaso, numa boate de stripers.
Comemorar o aniversário, com amigos, e
de repente subiu ao palco a número cinco. Foi perfeita até ser percebida. Ele
também se assustou, mas resolveu tirar proveito da cena, simplesmente deu um
risinho cúmplice e logo, logo ela estava sentada à mesa, bastante envergonhada,
tentando dar um traço artístico àquela mudança de vida tão brusca. “Quero
experimentar tudo”, disse ela, informando que não deixara de escrever e o tema
era um mundo inteiramente novo, consistentemente erótico, conforme sentenciou. Não
deu muito certo. Ela terminou indo dormir com ele, e no quarto e sala ela
derramou-se, chorou a noite inteira, com intervalos para beber.
Entre goles de vodka, recitaram poemas e
prosas, diante da TV sem som e era mais ou menos assim o começo do roteiro,
pois ele seguia, como terceira pessoa, os passos de Grahan Greene, seu ídolo,
em o Terceiro Homem. Green achava
difícil, senão impossível, construir uma história para um filme, com seu
ambiente e atmosfera, sem conceber antes um livro, pois o ato inicial da
criação em forma de roteiro poderia tornar o enredo muito enxuto e insípido.
Então pensou num livro inteiro sobre ela, narrando o que aconteceu de fato e
inventando outras partes.
História dividida em duas partes. O
primeiro e o segundo encontro, sendo que o segundo, na sequência do filme, é o
primeiro. Tempo passado, mas como se fosse presente. Ela está em casa com ele,
bebendo vodka, chorando e recitando poemas. Vez por outra se justifica, ataca o
sistema e diz que seus anos de prostituição não foram inteiramente perdidos
Já a primeira vez, que vale como última, a
situação será diferente, não haverá mais desculpas, motivações, choro ou poemas. Ela o
encontrará, sob a luz do poste, e apenas dirá, meio amarga, C'est la vie, e caso ele
não se conforme, queira saber o que houve, ela repetirá, antes de sair de
quadro, C'est la vie.
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