- A consciência disso não lhe apavora? –
perguntou o sábio da auto-ajuda, sentando num trono manuelino, fumando um
cigarro –. O candidato a escritor de “livros sérios” apenas balançou a cabeça,
dizendo “não”, porque se fosse pensar nisso não sairia do lugar ou se jogava do
prédio. Diz que não pensar na morte e procura tratá-la com naturalidade, embora
não ache provável uma segunda chance.
- À beira dos 50 – prosseguiu o sábio,
obviamente referindo-se ao aniversário do interlocutor –, a qualidade da carne
vai decaindo, e você vai procurar conforto em outras camadas; alguns vão à
cultura, outros à soneca. Só que a intensidade não será a mesma. As suas
emoções não serão as mesmas, como a do primeiro amor etc e tal. Ao mesmo tempo, as emoções dos jovens talvez
lhe interessem, mas serão inalcançáveis para você. Entendeu?
- Parece um treinamento para o Juízo Final
– disse o interlocutor, amigo do sábio há décadas, entre brincalhão e
preocupado.
- Mais ou menos – respondeu o sábio -, mais
ou menos. Até por questões físicas não dá mais para encarar as melhores coisas
da vida e conhecendo você sei que se evadirá para aquele território de velhos
que se dizem satisfeitos com tal condição, embora não estejam. Você dirá que acumulou
isso e aquilo, mas não acumulou nada, está apenas em fase de declínio,
procurando emoções sutis, como a literatura, mas ainda assim insatisfatórias.
- Caro sábio – disse o interlocutor,
mostrando alguma reação -, meu caríssimo sábio, sobraria pelo menos a memória,
e se sobra, em que posso usá-la? O que já passou vale alguma coisa?
- O tempo também devasta a memória. Você
passa a dar importância exagerada a histórias banais para os outros, passando a
se repetir, torna-se enfadonho inclusive para si próprio.
O candidato a escritor, com agenda marcada
desde o ano passada, não queria voltar de sua viagem aos Pirineus com as mãos e
a alma vazias, tomado pelo pessimismo e o niilismo, sem gosto pela vida da meia
idade, sem significados. Voltou-se então ao sábio com sua dúvida crucial:
- E ai? – simplificou.
- E ai – disse o mestre, ainda fumando o
cigarro – e aí, eu não sei direito, para dizer a verdade, não sei. Só entendo
do meu mercado, penso para ele, sigo as tendências, mas com um molho bacana. Hoje
em dia o leitor de auto-ajuda está mais exigente, quer um pouco de Filosofia
Pura, interpretada para iniciantes, mas quer. Então, seria demagógico da minha
parte dizer que há alguma grandeza na condição humana sem antes refletir um
pouco sobre isso. De forma customizada, se que é você entende. “O que se leva
da vida é a vida que a gente leva”. Não vou sair dizendo isso por ai, mas digo
a mesma coisa de outro modo, em parágrafos aflitivos e filtragem da Filosofia
para o desejo da classe média. Nietzsche serve para tudo. Uns acham que ele nos
propõe um beco sem saída; outros acham que as palavras de Nietzsche são a
saída. Tenho usado muito ultimamente. Tudo isso para chegar ao ponto: não quero
envolver você nessa enganação, você não leria um livro meu. Então, não sei. Não
sei mesmo.
- Mas você falou sobre os males da idade.
Penso mais ou menos do mesmo jeito. Não esperava uma solução de sua parte...
- O diagnóstico é esse, querido. Só que
trabalho com soluções. Meus livros são o remédio para almas penadas em
livrarias de aeroportos e lojas de conveniência. Não é exatamente literatura.
Faço guias práticos para vidinhas de merda e tudo se encaixa. Minhas frases são citadas em redes sociais,
tenho milhares de seguidores no twitter, porque as pessoas querem o óbvio,
óbvio embalado em Spinoza, mas o óbvio. Não adianta mais empurrar frases
desacompanhadas (“Pedras no caminho? Guardo todas, um dia vou construir um
castelo...”). O caminho é a interpretação pela ótica de fulano ou sicrano, cuja
leitura direta será penosa para meus clientes. Traduzo para eles, a gosto.
Reduzo, torno tudo mais raso e sirvo. Às vezes nada sobra do pensador em
questão.
-Bom, sábio, marquei a consulta só para
vê-lo depois de tanto tempo. Você foi sincero comigo, fui sincero com você
nessa conversa meio absurda. Você mudou, hein? O importante é que ambos não
acreditamos em auto-ajuda. E tem mais o seguinte: o fato é que tenho um
livrinho, feito de sacanagem, mas em condições de ser levado a sério por gente
do seu público. Pensei talvez, talvez você pudesse dar uma força lá com a
editora...
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