segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Autoajuda





- A consciência disso não lhe apavora? – perguntou o sábio da auto-ajuda, sentando num trono manuelino, fumando um cigarro –. O candidato a escritor de “livros sérios” apenas balançou a cabeça, dizendo “não”, porque se fosse pensar nisso não sairia do lugar ou se jogava do prédio. Diz que não pensar na morte e procura tratá-la com naturalidade, embora não ache provável uma segunda chance.

- À beira dos 50 – prosseguiu o sábio, obviamente referindo-se ao aniversário do interlocutor –, a qualidade da carne vai decaindo, e você vai procurar conforto em outras camadas; alguns vão à cultura, outros à soneca. Só que a intensidade não será a mesma. As suas emoções não serão as mesmas, como a do primeiro amor etc e tal.  Ao mesmo tempo, as emoções dos jovens talvez lhe interessem, mas serão inalcançáveis para você. Entendeu?

- Parece um treinamento para o Juízo Final – disse o interlocutor, amigo do sábio há décadas, entre brincalhão e preocupado.

- Mais ou menos – respondeu o sábio -, mais ou menos. Até por questões físicas não dá mais para encarar as melhores coisas da vida e conhecendo você sei que se evadirá para aquele território de velhos que se dizem satisfeitos com tal condição, embora não estejam. Você dirá que acumulou isso e aquilo, mas não acumulou nada, está apenas em fase de declínio, procurando emoções sutis, como a literatura, mas ainda assim insatisfatórias.

- Caro sábio – disse o interlocutor, mostrando alguma reação -, meu caríssimo sábio, sobraria pelo menos a memória, e se sobra, em que posso usá-la? O que já passou vale alguma coisa?

- O tempo também devasta a memória. Você passa a dar importância exagerada a histórias banais para os outros, passando a se repetir, torna-se enfadonho inclusive para si próprio.

O candidato a escritor, com agenda marcada desde o ano passada, não queria voltar de sua viagem aos Pirineus com as mãos e a alma vazias, tomado pelo pessimismo e o niilismo, sem gosto pela vida da meia idade, sem significados. Voltou-se então ao sábio com sua dúvida crucial:

- E ai? – simplificou.

- E ai – disse o mestre, ainda fumando o cigarro – e aí, eu não sei direito, para dizer a verdade, não sei. Só entendo do meu mercado, penso para ele, sigo as tendências, mas com um molho bacana. Hoje em dia o leitor de auto-ajuda está mais exigente, quer um pouco de Filosofia Pura, interpretada para iniciantes, mas quer. Então, seria demagógico da minha parte dizer que há alguma grandeza na condição humana sem antes refletir um pouco sobre isso. De forma customizada, se que é você entende. “O que se leva da vida é a vida que a gente leva”. Não vou sair dizendo isso por ai, mas digo a mesma coisa de outro modo, em parágrafos aflitivos e filtragem da Filosofia para o desejo da classe média. Nietzsche serve para tudo. Uns acham que ele nos propõe um beco sem saída; outros acham que as palavras de Nietzsche são a saída. Tenho usado muito ultimamente. Tudo isso para chegar ao ponto: não quero envolver você nessa enganação, você não leria um livro meu. Então, não sei. Não sei mesmo.

- Mas você falou sobre os males da idade. Penso mais ou menos do mesmo jeito. Não esperava uma solução de sua parte...

- O diagnóstico é esse, querido. Só que trabalho com soluções. Meus livros são o remédio para almas penadas em livrarias de aeroportos e lojas de conveniência. Não é exatamente literatura. Faço guias práticos para vidinhas de merda e tudo se encaixa.  Minhas frases são citadas em redes sociais, tenho milhares de seguidores no twitter, porque as pessoas querem o óbvio, óbvio embalado em Spinoza, mas o óbvio. Não adianta mais empurrar frases desacompanhadas (“Pedras no caminho? Guardo todas, um dia vou construir um castelo...”). O caminho é a interpretação pela ótica de fulano ou sicrano, cuja leitura direta será penosa para meus clientes. Traduzo para eles, a gosto. Reduzo, torno tudo mais raso e sirvo. Às vezes nada sobra do pensador em questão.  

-Bom, sábio, marquei a consulta só para vê-lo depois de tanto tempo. Você foi sincero comigo, fui sincero com você nessa conversa meio absurda. Você mudou, hein? O importante é que ambos não acreditamos em auto-ajuda. E tem mais o seguinte: o fato é que tenho um livrinho, feito de sacanagem, mas em condições de ser levado a sério por gente do seu público. Pensei talvez, talvez você pudesse dar uma força lá com a editora...





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