A moça das runas chegou. Ligada à mitologia
nórdica, politeísta e adepta da premonição, ela ficou chateada quando eu
comentei que os vikinks eram a escória de uma sociedade ainda em construção.
Eram salteadores e piratas. Daí, pulei para a antropologia nacionalista: “por
que Odin e não Ogum?” Expliquei
então que os deuses louros têm seu Olimpo - Asgard -, mas os orixás também contam
com o seu plano espiritual, Orum. “Parece muito com mitologia grega”,
continuei, levando em conta que tudo por ter vindo da África, etc.
Normalmente não puxaria uma conversa desse
tipo, prefiro futebol, e ela estava calada, meio perplexa, mas absolutamente
linda. Com sua vestimenta cerimonial, parecia uma deusa e eu não acredito em
coisas sobrenaturais, mas parecia. Poderia ter pensado estar diante de um
vislumbre, uma revelação de Shiva (Shiva faz revelações?), mas não. Pensei,
apenas: “que gata!”. Pois é. A moça que estava ali, versada em runas e Futhorc,
causadora de tempestades e outros fenômenos, era especialmente uma exuberante
morena bronzeada, escondendo sua brejeirice em gestos de personagem da Saga de
Völsunga.
Na verdade, passei uma semana em meticulosa
pesquisa na internet para me inteirar das religiões nórdicas. Descobri que os
deuses morrem e a própria crença em Odin e Thor quase desapareceu com a chegada
das tropas do cristianismo, já uma espécie de OTAN no século XI. Tomei essa
providência no dia em que a deusa Hel em pessoa, embora morena, subiu numa
escada para dispor a placa de seu estabelecimento: “Svartalfheim” (Repouso dos
elfos). Nome estranho, sei não; só sei que Hel, o nome da deusa, deu no inglês
Hell (inferno). Coisas anglo-saxônicas. Pois estava a diabinha montando seu
inferninho esotérico na minha rua e não parei um segundo de olhar. Era a
síntese de todas as mulheres do mundo e nem ao menos eu tinha falado com ela.
Lojinha montada, marquei a consulta. Cheguei lá pontualmente. Sou o único cliente.
O negócio está apenas começando. Duas outras moças abriram a porta do quarto
onde a deusa fazia suas consultas. Foi aí que me senti ainda mais atraído e
disposto a enveredar por todas as mitologias só para tomar um sorvete com ela.
Como uma moreninha dessas se mete com mitos da Escandinávia? Difícil entender. “Por
que não Iemanjá?”, perguntei, voltando ao início deste texto. Não seria uma
surpresa se ela surgisse de Eruexin- - o chicote de crina de búfalo usado por
Oyá -, mas veio com uma bata translúcida, o sol entrando pela janela, e
palavras suaves de boas vindas em idioma viking. Foi difícil tirá-la deste
estado e também não me importei muito, pois a janela aberta, o sol entrando e a
bata translúcida formava de fato um belo conjunto, cujo principal elemento
estava fora dele, aliás, dentro: o corpo da deusa morena sueca. A calcinha, bem
visível, provavelmente era da grife indiana Kushmanda Overseas.
Aos poucos, depois de consultar seus
oráculos, com previsões previsíveis, finalmente a deusa resolveu descer de Asgard
e saiu-se muito bem. Primeiro mostrou conhecimento de macumbas em geral, disse
que era filha de Iansã, e a conversa descambou para a vida no bairro. Ninguém
mais viria e ela parecia não dar importância. Pensei em chamá-la para uma
cerveja ali na esquina, mas achei conveniente permanecer no interesse por seu
trabalho e perguntar se ela já tinha lido As
Máscaras de Deus, de Joseph Campbel, e terminei perguntando mesmo e a
resposta foi a melhor possível: Já lí, claro; você leu, ótimo. “Cara...” Essas
reticências – poderiam ser exclamações - precisam ser entendidas como um olhar
de agradável espanto por ter encontrado ali, na inauguração da Svartalfheim,
alguém tão afinado com suas preferências.
Cada coisa a seu tempo. Chamei para a
cerveja. Descobri o melhor. A moça tinha os pés assentado no mundo, ou também,
porque contou que o consultório Viking era apenas mais um negócio em sua
pequena, mas diversificada vida empresarial. Já teve brechó, lojinha de
produtos naturais e uma papelaria com viés origamista.
- A pior coisa do mundo é deixar de gostar
– disse ela -. Não precisa nem ser de gente, um grande caso de amor acabado, uma
amizade destruída aos poucos, por exemplo. Mas uma coisa, uma maneira de ser,
uma música, um empreendimento. Foi o que aconteceu comigo, aliás, sempre
acontece. Passei um tempo morrendo de medo de perder o interesse por moda – e
perdi. A partir daí, não liguei mais para moda e segui em frente. Mas logo comecei
a gostar de outras coisas e o medo voltou. Estou com medo de deixar de gostar
as runas e da mitologia nórdica.
Qualquer psicanalista teria enxergado ali
um problema. Eu enxerguei uma oportunidade. Ensaiei um “basta apenas gostar da
vida” e achei meio óbvio, além de perigoso, pois ela poderia passar a desgostar
da vida e aí fudeu. Fui pelo mais fácil
e lembrei como gostava de futebol quando era criança, passei um tempo sem
gostar tanto, e depois voltei a gostar de novo. Além disso, a gente não precisa
de tanta dedicação a um tema tão antigo e improvável, a não que esteja
escrevendo uma tese sobre isso, e que aplicar esse tipo de coisa à vida prática
é uma insanidade, no meu ponto de vista de descrente, mas essa parte eu só
pensei, não disse.
Foi tudo muito rápido. A lojinha faliu e a
deusa Hel não se abalou. Entregou o imóvel e desembarcou em minha casa com os
apetrechos cerimoniais. O casamento foi uma cerimônia simples, sem sinais
nórdicos, e vivemos quatro semanas e meia de paixão calorosa e alegre até ela
anunciar que estava com medo. Com medo de deixar de gostar de mim. Aconteceu.
Em duas semanas voou para a Califórnia para encontrar-se com um guru descoberto
na internet - Um garoto cheio de
vida, quase um surfista, parecido com o Thor do desenho animado. Adeus, Asgard.
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