À medida que ia se intelectualizando ia
ficando doida, ocorre muito isso e aconteceu com ela, cuja escrita bem posta e
gostosa de ler, trazia um conteúdo de aberrações para o bom senso. Foi um longo
aprendizado para chegar a opiniões inteiramente contrárias à lógica dos nossos
tempos, como propor a paralisação geral da humanidade em troca do fim do estresse
e do bem do planeta, pois passou a creditar ao desenvolvimento todas as nossas
mazelas. Com seu texto radical e afirmativo ainda chegou a arrebanhar
seguidores na universidade, mas eles a deixaram. Os sintomas não estavam apenas
em seus ensaios. Descuidou-se do apartamento, seu gato morreu de fome e por fim
ela foi internada, levando para o sanatório os originais de “Deixar de produzir”.
Poderia ter virado ficcionista. Transformar
suas idéias para o mundo num cozido imaginário, dar aquela voz a um personagem.
Não. Queria mesmo aquilo como tratado sociológico ou coisa parecida. O leitor
ia bem nos primeiras linhas, mas quando chegava no meio do texto, ou
antes, não pensava em outra coisa: é
maluca.
Resultado: foi parar na clínica a conselho
de velhos amigos. Todos sabiam que não era normal se revoltar em cada parágrafo
da maneira como ela se revoltava. Mesmo os posts das redes sociais vinham com
raiva em estado puro e, se fosse o caso, ela daria um tiro depois do ponto. Era
um desafio para os psiquiatras, especialmente os psicanalistas, uma vez que sua
prosa não era apenas deliciosa em suas explosões de ira. Havia humor e um pesado
embasamento teórico para chegar a arremates fora de questão sob qualquer tipo
de pensamento vigente. Também deixou de pagar contas, pentear os cabelos e
escovar os dentes.
Outro detalhe não passava despercebido. Era
linda. Quase quarenta e o olhar aceso de uma adolescente e o corpo seguia a
mesmo viço, entre macio e rijo. Tenra, era a palavra. A admirável gata, agora
dopada por um pesado coquetel de antidepressivos, não conseguia extinguir-se
por um instante. Continuava escrevendo em sua mesinha de hospício, refletindo
sobre a loucura dos outros pacientes e, mais uma vez, chegando a conclusões
delirantes, ou tidas como tal. Agora sugeria a completa falta de juízo como
padrão social.
Três meses de tratamento. Os médicos
trocavam de drogas e não acertavam o alvo. Ela quase não conseguia dormir,
mesmo sob efeito de clorpromazina e outros antipsicóticos. Nesse período, as
visitas foram rareando até chegar a ninguém. A louca teórica foi esquecida, ou lembrada de
passagem - onde estaria agora? -, mas um dia reapareceu, ainda mais bonita e
curada. Os psiquiatras encontraram a droga certa, perfeita para seu caso. Todos
os sintomas sumiram, o jeito aéreo sumiu, o apartamento estava limpo de bem
decorado, e havia parado de escrever.
De agora em diante, nada de idéias
atípicas. Ela está normalíssima. Vê novelas, se assusta com filmes de fantasmas
e adora finais felizes. Tem um namorado, desconhecido na antiga turma. Não fuma
e bebe com moderação. Irreconhecível, quase inverossímil, porque a
transformação foi uma espécie de transplante de alma. Tiraram tudo que ela
tinha de esquisito – e precioso – e colocaram no lugar uma alma standard, um
espírito e um jeito de ser que não eram dela; desses encontrados aos montes na
praça.
Ilustração: Henrique Koblitz
Um comentário:
Parabéns caro Lula, se aprimorando cada vez mais. Já sei que vem livro novo por ai. Abs
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