Tudo que passei ontem à noite ficará para
sempre em minha mente, embora me lembre de pouca coisa, só sei da importância
do evento, quase nada a mais. Mas a memória volta, aos poucos, e estou sentado
numa sala, esperando minha vez de entrar, senha 678. Não lembro o que tem lá
dentro, até agora. De fora, o prédio é grande, isso recordo, e também havia um
jardim imenso e o céu estava nublado.
Dentro da cabeça com dor da ressaca, puxo
lembranças mais fundas e começam a surgir sinais estranhos, não decifráveis,
difíceis de descrever, como um choque elétrico acompanhado de imagem, quase
flashes, comprimindo meu cérebro. Há um homem e uma mulher e estou sentado
diante de uma espécie de altar, amarrado à cadeira, com fios tecidos por
aranhas. Não estou sendo interrogado, como nos filmes, nem há clima para
atirarem em mim porque o casal parece amistoso, rostos familiares, talvez meus
pais.
Uma porta se abre e entra mais uma pessoa,
vestida de forma singular, como um sacerdote antigo. Ainda não faz sentido e a
busca de sentido me deixa exausto, pois aconteceu alguma coisa ontem e foi
muito importante. Quando eu sair da cama, daqui a pouco, devo me comportar de
acordo com o tal evento. Haverá uma nova vida à minha espera e preciso
entendê-la antes de enfrentá-la.
O esforço para lembrar continua. A
curiosidade chega com força ingovernável e quero saber o que houve de real e se
não passa de fantasia ou alucinação. Tenho certeza que não foi sonho, cuja
dinâmica é outra, nem sei a diferença, mas sinto as dimensões por onde passam a
realidade e a ilusão. Todos sentem.
Pode existir um personagem que desconheço.
Há casos assim na literatura, a Jane Austen gostava disso - personagens
surgidos durante a feitura do livro. Assim também pode ser a vida, misturada
com ficção, dentro de um novo mundo capaz de girar e produzir acontecimentos,
mas apenas para escritor e leitor. O casal, a terceira pessoa, o altar e até eu
ontem à noite estávamos dentro de um romance e só consigo lembrar-me dessa
parte, mesmo assim de forma dissolvida.
Então, a montagem do texto é sobre o caso
acima e falta o principal: dar um desfecho convincente para a situação do
personagem. Criou-se o mistério sem conhecimento do final e o recurso da amnésia
alcoólica pode não ser adequado, muito menos a cena, com o altar e, mais
difícil ainda, imaginar como a ocorrência da noite anterior causou uma mudança
tão brusca e radical. Mudança, aliás, ainda não pensada pelo autor. Enquanto
isso, ele rumina, com a cumplicidade de uns poucos, sobre a dificuldade de
pensar alguma coisa com o mínimo de lógica.
Para concluir a história, seja neste mundo
ou em outro, é preciso encontrar um objetivo para cada personagem e dar ao
narrador a função de puxar ainda mais pela memória, afinal, ele está acordando
agora, assustado com a noite anterior e precisa urgentemente de respostas, como
o significado da senha 678.
Ilustração: Koblitz
Nenhum comentário:
Postar um comentário