sábado, 9 de fevereiro de 2013

Anotações para um conto de suspense





Tudo que passei ontem à noite ficará para sempre em minha mente, embora me lembre de pouca coisa, só sei da importância do evento, quase nada a mais. Mas a memória volta, aos poucos, e estou sentado numa sala, esperando minha vez de entrar, senha 678. Não lembro o que tem lá dentro, até agora. De fora, o prédio é grande, isso recordo, e também havia um jardim imenso e o céu estava nublado.

Dentro da cabeça com dor da ressaca, puxo lembranças mais fundas e começam a surgir sinais estranhos, não decifráveis, difíceis de descrever, como um choque elétrico acompanhado de imagem, quase flashes, comprimindo meu cérebro. Há um homem e uma mulher e estou sentado diante de uma espécie de altar, amarrado à cadeira, com fios tecidos por aranhas. Não estou sendo interrogado, como nos filmes, nem há clima para atirarem em mim porque o casal parece amistoso, rostos familiares, talvez meus pais.

Uma porta se abre e entra mais uma pessoa, vestida de forma singular, como um sacerdote antigo. Ainda não faz sentido e a busca de sentido me deixa exausto, pois aconteceu alguma coisa ontem e foi muito importante. Quando eu sair da cama, daqui a pouco, devo me comportar de acordo com o tal evento. Haverá uma nova vida à minha espera e preciso entendê-la antes de enfrentá-la.

O esforço para lembrar continua. A curiosidade chega com força ingovernável e quero saber o que houve de real e se não passa de fantasia ou alucinação. Tenho certeza que não foi sonho, cuja dinâmica é outra, nem sei a diferença, mas sinto as dimensões por onde passam a realidade e a ilusão. Todos sentem.

Pode existir um personagem que desconheço. Há casos assim na literatura, a Jane Austen gostava disso - personagens surgidos durante a feitura do livro. Assim também pode ser a vida, misturada com ficção, dentro de um novo mundo capaz de girar e produzir acontecimentos, mas apenas para escritor e leitor. O casal, a terceira pessoa, o altar e até eu ontem à noite estávamos dentro de um romance e só consigo lembrar-me dessa parte, mesmo assim de forma dissolvida.

Então, a montagem do texto é sobre o caso acima e falta o principal: dar um desfecho convincente para a situação do personagem. Criou-se o mistério sem conhecimento do final e o recurso da amnésia alcoólica pode não ser adequado, muito menos a cena, com o altar e, mais difícil ainda, imaginar como a ocorrência da noite anterior causou uma mudança tão brusca e radical. Mudança, aliás, ainda não pensada pelo autor. Enquanto isso, ele rumina, com a cumplicidade de uns poucos, sobre a dificuldade de pensar alguma coisa com o mínimo de lógica.

Para concluir a história, seja neste mundo ou em outro, é preciso encontrar um objetivo para cada personagem e dar ao narrador a função de puxar ainda mais pela memória, afinal, ele está acordando agora, assustado com a noite anterior e precisa urgentemente de respostas, como o significado da senha 678. 

Ilustração: Koblitz

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