quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Obituário




Sempre chegava com um poeminha recém-feito, e o último, “A vida é ávida”, pretendia, segundo ele, encontrar o ponto G da alma humana. Mas não passava de um jogo de palavras, como “O bardo retumbante”, outro da mesma linha, sobre a ascensão de Shakespeare ao reino dos céus. Vivia de bar em bar, vendendo livrinhos caseiros, levando fora de casais e bêbados, especialmente quando perguntava, em momento impróprio, se podia “tomar um pouco da sua atenção”.  Era humilde, embora se achasse um autor monumental, quase um poeta inglês.

A vida prática foi sacrificada em nome da poesia, empreendimento sem muito futuro em termos monetários. Em nome de Yeats e outros de sua predileção, habitou-se à precária casinha herdada da mãe, seu único bem. Fazia o próprio almoço com ingredientes baratos – macarrão e salsichas, por exemplo -, embora tivesse conhecimento sobre diversos tipos de culinária, suas origens e segredos. Dava-se por preparado para ser rico. Tinha a estrutura intelectual e bom gosto para gastar da melhor maneira. O dinheiro, no entanto, nunca chegava.

Rodou uns anos até ser aceito no círculo literário da boemia local e deixou de vender poemas de mesa em mesa. Tinha boa conversa e bebia sem alarde, um conhaque atrás do outro, sem parecer bêbado. Sua presença, antes uma concessão, passou a ser respeitada, menos pela poesia, mais pelo jeitão de ser. Era o sujeito que sabia quase tudo, muito antes da existência do Google. Quando dava um branco na mesa ou havia controvérsias, ele esclarecia a dúvida, acrescentando detalhes, sem parecer pedante.  Também era discreto. Ao ver os amigos partindo para outro lugar, mais caro, criava alguma desculpa para ficar. Por isso, não bebia chope. Três goles e lá se vão seis reais. Comprava seu conhaque de terceira no boteco ao lado, colocava-o no copo de plástico, e na mesa fazia a transferência do líquido para a taça tipo baloon, com base curta. “Conhaque é a minha bebida”, mentia.

Só não era modesto em relação a seus poemas. Achava-se injustiçado por falta de reconhecimento mais amplo e quando a pequena turma resolveu bancar seu primeiro livro de editora, numa pequena edição, ele não agradeceu, achou que era obrigação, um serviço às letras nacionais, uma forma de remuneração indireta. No fundo era mais inveja e revolta. Por que eles têm dinheiro e eu não tenho? Alguns estavam no serviço público, bom lugar para literatos; sem o serviço público não teríamos Machado de Assis e talvez nem Graciliano. Só que ele continuava ao léu, sem emprego e sem dinheiro, catando trocados para o Dreher. Não é mesmo grande coisa. Outros da mesa conseguiram muito mais, na TV, escrevendo roteiros vulgares ou mantendo seus empregos na imprensa.      

Houve lançamento, no próprio bar, e ele estava dono de si como nunca, vestindo uma roupa cara, comprada à prestação.  De razoável para boa, a noite de autógrafos rendeu-lhe alguma satisfação no início, bebeu até uns chopes, mas de volta para casa pensou se o sacrifício era necessário. Viver daquela maneira, meio jogado. Ninguém vive de prosa, quanto mais de poesia. Assomou-lhe uma tristeza imensa, dessas em que o mundo acaba e vira dor física no meio do peito. Ele começou a chorar. Até a porta de casa, com isso na cabeça, surgiu a ideia de mudar de vida, fazer um concurso público, esquecer os versos.  Tudo aquilo, porém, remetia para um longo poema, sofrido e definitivo, e ele correu para o quarto, sentou-se diante da velha mesinha e começou a escrever seu segundo livro.


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