Por que resolvi morar nessa cidadezinha do
oeste norte-americano onde tudo ocorre de acordo com os filmes da sessão da
tarde? Todo dia a mesma coisa ou coisas parecidas. O xerife aposentou-se e
ganhou um relógio dos colegas, há ânsia geral sobre quem leva quem para o baile
de formatura e vejo em noites seguidas rapazes deixarem meninas em casa. Na
porta, beija, não beija ou entra. Os Watson levaram uma torta para os novos
vizinhos, Peter recebe o jornal de seu cão, o pequeno Bill vende limonada, Mary
faz uma garage sale e os policiais comem rosquinhas. John voltou do Iraque e
comprou uma arma.
Almas em conflito
Antigamente, um povo primitivo abria o
corpo de seus mortos para facilitar a saída da alma. Muitas delas desencarnavam
antes do funeral, por causa de golpes de adagas e de outros objetos capazes de
larguear o tórax. Por essa abertura, o espírito escapava e seguia sua jornada
rumo ao desconhecido.
Com a chegada dos missionários cristãos, os
silvícolas foram informados dos destinos da alma: Céu, Purgatório e Inferno. Os
ímpios e criminosos, sob a visão da igreja, precisariam se esforçar no
purgatório para serem aceitos no Reino dos Céus. Outros, sem chances de perdão,
iriam direto para o inferno. Deixou de dar mais detalhes aos índios, mas eles
perceberam que a Justiça Divina era morosa por sua própria natureza -
especialmente porque a decisão cabe a um único ser superior. O fato de ter a
eternidade pela frente, daria a Ele sensação de que tudo pode ser deixado para
amanhã ou para daqui a mil anos.
Os primitivos não entendiam tamanha
burocracia e o chefe tribal foi ao padre – aliás, muito parecido com o nosso
Anchieta – com suas ponderações destinadas às autoridades eclesiásticas. Seus
comentários tinham o sentido de melhorar o fluxo de informações entre as forças
do universo. Quase um aconselhamento de gestão. Não seria mais fácil deixar os
espíritos soltos na floresta, mais perto da aldeia? Não seria mais fácil
dividir a responsabilidade do julgamento com outros seres iluminados?
Mas a tese não prosperou. Os padres acharam
aquilo inteiramente fora de propósito. A verdade estava na Bíblia e pronto. A
palavra do Senhor não seria mudada por simples opinião de um selvagem, mesmo
que ele tenha aludido a aspectos sinergéticos de suma importância. A
evangelização seguiria, segundo os dogmas, com catequese completa, incluindo a
questão dos santos e a dos anjos. O missionário, apesar de sua religião já ter
assado pessoas nesse período, achou brutal arrancar pedaços humanos. O homem
primitivo ainda ponderou, num tom quase profético para o mundo do terceiro
setor dos dias de hoje: “o desperdício é zero. Comemos tudo que é tirado”.
O modelo da tribo era mais dinâmico, menos
oneroso e, ao final, continha soluções mais elegantes para o post-mortem. O
segredo é a simplicidade, argumentou o chefe da tribo.
E-mail da editora
“Vou ser direta: não gostei. Foi um
suplício ler seus originais. Li obrigada por nossa longa amizade. Caso
contrário teria deixado para lá, como faço com noventa por cento do que recebo.
Lamento a sinceridade, mas parei de fumar e de mentir. Você pediu minhas
observações. Só ontem me lembrei dessa parte, talvez mais dolorosa, porque não
vi ali um livro, mas um cozido mal feito de besteiras ouvidas em bares. Sem
contar que os personagens são conhecidos. Fiquei especialmente incomodada com a
Gisele. Sou eu, né? Que canalhice. Essa história de escrever está acabando com
seu caráter e nada acrescenta à nossa literatura. Desista”.
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