Tantas diretrizes, portarias, informes,
ofícios, memorandos, empenhos e outros papéis para o recém-contratado e ele sem
qualquer pendor para o dia a dia do serviço público e não sabia o que fazer com
esses documentos e sempre pedia ajuda. Mas como era indicado pelo senador
deveria ser assim, ou caso fosse um estorvo ao departamento poderia permanecer
em casa, comparecendo à repartição apenas uma vez ou outra, para marcar
terreno, mostrar que existe, pois tem muita gente nessa condição, que só aparecia
para receber dinheiro, mas agora nem isso; só vai ao caixa 24 horas, faz o
saque do salário e não fica com esse compromisso chato de rever aquelas pessoas
olhando com reprovação, mas no fundo estão é com inveja. Então ele resolveu ficar em casa. Já sabia que
seria assim e assim foi apenas o começo.
Não quero que se veja nisso uma observação
moral e política; é apenas um olhar sobre uma cena humana, que se repete, aqui
e em outros lugares, e em sua complexidade corre na numa via paralela entre o
certo e o errado, porque não me cabe julgamento, conforme salientei. Meu
propósito é ver a coisa pela ótica do beneficiado, cuja vida não é tão ociosa,
segundo o senso comum imagina, uma vez que ele trabalha diariamente nesse
artesanato cheio de delicadezas, que é a ofício de fazer amigos e influenciar
pessoas.
Receio não ser entendido pelos defensores
da ética no serviço público e a estes só queria dizer que o assunto me veio
apenas porque, no primeiro parágrafo, achei que deveria ritmar determinadas
palavras e só depois descobri o que o conjunto poderia suscitar. Trata-se, pois, de um personagem sobre o qual
não tenho juízo de valor, apenas deixo que ele fale:
- Acordar nunca foi um sacrifício. Estou
disposto, sou jovem, tenho o mundo pela frente. Nada de específico na agenda de
hoje. Amanhã é aniversário do diretor. Tenho que ir. Preferia a festa da
Lucimar. Soube que ela foi promovida. Tem trabalhado duro com seus contatos.
Preciso me esforçar ainda mais. Basta dizer que a Lucimar nem precisou assinar
o contrato de trabalho. Veio um carro, com o oficial de gabinete. Tratamento
VIP. Ela deu sorte, o candidato dela ganhou a eleição. O meu perdeu, tive que
rever a estratégia e só havia um jeito: mudar de lado. Tenho Know-how nisso.
Vem de família. Meu avô foi do PSD, da UDN e do PTB; apoiou o golpe, entrou na
Arena e quando viu o barco afundando foi para a “Frente Liberal”. Fosse vivo,
estaria na base aliada e cheio de amigos na oposição. Sempre era bem-recebido
quando chegava ao novo partido e ganhava mais respeito do que o velho militante
histórico. Esse já estava garantido, não precisa de agrados, acreditava em
ideologia. Já o traidor é o dono da festa. Só que isso não ocorre só na
política. No caso do amor, por exemplo, alguém só é traidor para o traído; o
anfitrião do infiel quer saber apenas de beijinhos e planos para o futuro. A
política, claro, requer algumas sutilezas, “gestos”, como se diz, porque não dá
para perder uma eleição, atravessar a rua e juntar-se ao ex-adversário. Tem
gente que faz isso, sem muito sucesso. A manha é se chegar aos poucos e por
mãos certas, passar a freqüentar o reduto adversário a guisa de outros
assuntos, exibir muita cordialidade e, vez ou outra, lançar críticas ao seu
próprio lado e esperar pela proposta. Chega-se como convidado. Também não é
certo fazer barraco no antigo partido. Nesse ramo, a regra é a elegância porque
ninguém sabe o dia de amanhã, a política é dinâmica etc, e na eleição seguinte
você pode precisar de novo movimento – o de volta. É um trabalho exaustivo.
Telefono para aniversariantes em cargos de confiança e jornalistas, vou a
festas com discurso, tenho casos com secretárias feias. Além disso, sou
obrigado a aguentar comentários maldosos sobre minha situação funcional. Como
se eu desse tanta importância para a mixaria da repartição. Quero mesmo é
intermediar algumas propostas de terceiros, muitas delas destinadas ao bem do
País. Faço isso porque sou cínico, condescendente comigo mesmo. Não tenho
culpas. São características da minha atividade. Vá a Brasília e verá muito dos
nossos, em hotéis e ministérios. A nação funciona assim, com gente se mexendo,
e o povo termina recebendo uma parte de sua parte, pelo menos de vez em quando.
Quero agradar e receber por isso. Beijo pés por pequenas recompensas, elogio,
inflo egos, levanto bolas. No fundo, os bajuladores são amados e conseguem as
coisas. Por isso esse jantar caro para você, neste belo restaurante, em troca
de seu texto pelo menos neutro em relação ao meu modus operandi.
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