Minha
coleção de virtudes está incompleta. Falta uma figurinha
carimbada: não lhe dei atenção no momento crucial, quando veio a
doença, junto com suas necessidades práticas – o plano de saúde
ou um pedido a um velho conhecido da política, bastante para uma
internação gratuita em melhores condições, num hospital público.
Faltou-me dinheiro e iniciativa e eu esperei em casa, sob os
edredons, no inverno de 1990, enquanto ela buscava tratamentos
alternativos, que nunca dão certo.
O
homem bom, o cara legal, sempre reconhecido pelo caráter impecável,
ficou parado, esperando que tudo se resolvesse por conta própria ou
por intervenção de terceiros. Ela não morreu, mas perdeu o viço,
envelheceu dez anos em poucos meses, e a capacidade de tomar conta de
si foi sumindo até desaparecer. Não havia mais ninguém entre os
velhos amigos e seu pequeno mundo não tinha parentes providenciais.
Meu único gesto digno foi empurrar a cadeira de rodas na saída da
enfermaria, pagar um táxi e levá-la para minha casa, deixando-a na
edícula como um animalzinho ferido.
Nenhuma
reclamação da parte dela. Parecia ir morrendo aos poucos, calada,
tentando sorrir à força para agradecer minha atenção tardia. Daí
em diante, tentei manter os cuidados, mas era um pouco tarde, talvez
tarde demais. Dava-lhe comida na boca, providenciava o banho,
mudava-lhe a roupa. Depois saía e procurava esquecer esse transtorno
na minha vida. Ia a bares, bebia com outras mulheres e contava a elas
essa história triste, sem entrar em pormenores, sem a causa.
Um
salto mortal para o passado, como se fosse
possível, e estamos nos anos oitenta do século vinte. Uma vida
feliz de casal. Unha e carne, como diziam, juntos como duas ratazanas
de padaria, bichinhos conhecidos pela fidelidade mútua. Até o dia
em que ela conheceu a mulher de sua vida. Duas mulheres juntas ainda
era um tabu, naquele tempo, e me senti duplamente traído. No fundo,
minhas ações posteriores foram motivadas por vingança, orgulho e
preconceito, embora ainda não tivesse lido Jane Austen e se tivesse
dava na mesma. Literatura não resolve tudo, como de resto quase nada
resolve alguma coisa. No fim, como sempre, dá merda. Assim é a vida
e a morte, o ciclo imperfeito, e pensei na época que seu eu fosse
bom ou mau seria indiferente. Não há Deus para acudir a gente, como
pensam por aí, mas sentia falta de Deus, especialmente um deus que
tomasse providências, evitasse o declínio da nossa existência. Não
havia. Tudo é acaso e nossas grandes e pequenas desgraças ocorrem
com frequência porque Ele não existe e se existe fica apenas
observando o circo pegar fogo.
Eu
pensava muito nisso. Se Deus existe nem precisa do diabo, exerce os
dois papéis. Dá o frio e tira o cobertor, deixa o crente entregue a
outros mecanismos. Mesmo assim poderia estar enganado. Só que a fé
não funciona comigo.
Tiro
Deus dessa história. A culpa é inteiramente minha. Comi o prato
frio da vingança quando a namorada dela foi embora e a deixou na
miséria, apaixonada, doente e sem emprego. Mas a gente termina não
comemorando a vingança. É o prazer mais rápido que existe no
mundo. Depois vem a culpa e a sensação de falta de sentido. Foram
os pensamentos que passaram por minha cabeça quando empurrava a
cadeira de rodas, na porta da Santa Casa de Misericórdia (por que
colocam esses nomes em hospitais? Parece nome de cemitério. Gosto
mais da linguagem tecnocrática: centro de recuperação, pronto
socorro, atendimento à saúde etc etc).
No
anos 80 e 90 os medicamentos antidepressivos não eram tão bons como
os de agora. Psicotrópicos deixavam os pacientes babando e com a voz
engrolada. Ela sofria muito com a separação e adoeceu de outras
coisas. Sofreu com a namorada, mas não sofreu quando separou-se de
mim – esse era o problema; eu queria um pouco de sofrimento por
nossos anos de casados. Apesar de tudo, não culpo a namorada, que
agiu da forma como ela agiu comigo. Foi embora e ponto final.
Aí
veio a passagem do século e ela começou a melhorar a custa de novos
remédios e do tempo passado. Já andava, comia sem ajuda e conseguiu
remédios de última geração. A medicina evoluiu e seu coração
ficou menos apertado por causa da outra. Ficou agradecida pelos meus
préstimos, embora eu não achasse que merecesse tanto. Ainda nutria
restos de sentimentos negativos. Mas ajudei a repô-la no mundo em
condições razoáveis de sobrevivência. Considerava isso a melhor
parte – a parte do homem bom.
Então,
ela renasceu. Tinha jeito para a escrita e terminou um bom livro
sobre a doença, mas sem entrar em detalhes do nosso relacionamento.
Não éramos personagens da história, pois preferiu tratar a
depressão como um moto próprio - uma espécie de diário da cura.
Em
2013, considerei minha participação encerrada. Ela Também.
Escreveu uma carta amável, deixou em cima da mesa, e foi embora de
novo, desta vez sem ninguém. Fiquei aliviado por ter colaborado com
a recuperação – pelo menos depois da Santa Casa de Misericórdia.
Desde então, nunca mais nos vimos.
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