Espero tudo de Maria Alice, menos fidelidade. Não sei por que
aceitei o casamento em regime semiaberto, invenção dela, nunca tinha ouvido
falar disso. Já são quinze anos de vida extraconjugal da minha mulher, enquanto
aguento comentários desagradáveis e politicamente incorretos. Meu bairro ainda
é assim, atrasado, pessoas traídas são duplamente massacradas: pela traição em
si e pela fofoca. Maria Alice não diz nada. Só lembra que topei o semiaberto.
Lá vai ela, saiu de novo.
Antigamente eu ainda perguntava para onde ela estava indo, toda
produzida, e porque minha presença naquela noite era dispensável. “Não quero
chatear você”, ela respondia. Mais tarde, a notícia chegava: Maria Alice saiu
com sicrano, beltrano, ou mesmo beltrana, sicrana, não havia discriminação.
Quando voltava para casa, ela corria para o quarto, trancava a porta e ficava
lá, amuada, como se fosse a vítima da situação.
- Maria Alice! – eu batia na porta.
- Vá embora. Sei o que você está pensando
Eu voltava para a sala – o que se há de fazer? Entendia Maria
Alice. Ela sempre teve uma visão muito diferente do sexo. Havia o sexo
componente do amor e o sexo pelo sexo, como um exercício diário, necessário e
saudável, segundo ela. Mas ninguém percebe as coisas desse jeito. Virou a
vagabunda do bairro; eu virei corno. Sinceramente, acho uma simplificação dos
dois lados, mas não quero contrariar minha mulher nem entrar em confronto com a
vizinhança.
Maria Alice já teve diversas oportunidades de me explicar com
funciona sua cabeça em relação ao sexo. O regime semiaberto já é uma concessão,
pois se dependesse dela não haveria restrições. “Ao contrário dos animais,
estamos permanentemente no cio”, teorizava ela, em algumas horas de verdadeira
e imensa paixão. “A vida é curta para se transformar uma trepada avulsa num
Deus nos acuda”. Com o passar dos anos, a infidelidade de Maria Alice ganhou
sustança filosófica. “A sexualidade é essencial à existência humana, não só
pelo fato da procriação, mas antes de tudo pelo bem estar do individuo”, dizia
ela, citando Bertrand Russell.
Eu acho uma gracinha a fase intelectual de Maria Alice. Minha
situação é complicada pelos outros. Por ela, tudo bem. Nosso sexo é por amor.
Maria Alice pode dar suas saídas, contanto que volte. Minhas humilhações, nesse
eterno retorno, são substituídas por um raciocínio comum: a realidade é esta e
se continuo nela é porque quero. Eu quero.
Maria Alice e seu passado bem vivido. Sempre foi daquelas que
dividem apartamento, uma eterna roomate. Quando a conheci, tinha sido expulsa
de uma dessas moradias coletivas por traçar praticamente toda a comunidade,
criando desavenças, ciúmes e inimizades. Em sua ótica, talvez mais inocente à
época, era espantoso que as pessoas tratassem a questão dessa forma, com mau
humor. Aliás, tudo para Maria Alice depende de bom e mau humor dos outros. Seu
lema é “não gostou, foda-se”. Disse isso muitas vezes para mim. Sempre fugi do
ultimato.
De minha parte, sou fiel por não sentir falta de outra mulher,
cada um tem seu jeito; Maria Alice, por exemplo, tem o dela, gosta de variar.
Então eu passei a esperar, em casa, lendo alguma coisa, ouvindo sambas-canção,
enquanto ela estava na noite. No início, a ansiedade parecia insuportável. Com
o tempo, a coisa amainou-se, era como aguardar a chegada dela do trabalho,
embora parecesse o primeiro encontro. Uma vez ou outra eu parava e repetia a
anotação mental para o momento da chegada: “evite perguntas desnecessárias, não
demonstre contrariedades (nem entusiasmo, que assim também já é demais), pareça
mais moderno do que puro”. Hoje, procuro não incomodá-la com inquisições ou
lamentos.
Casamento é assim mesmo, a gente tem que fazer concessões.
Publicado no blog www.malvadezas.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário