Perdeu tudo que estava no computador. Quando o técnico avisou
que não seria possível recuperar os dados, ele foi aos prantos, encheu a cara e
chegou em casa de madrugada, tateando no corredor do prédio escuro. No disco
rígido formatado por engano, havia dezenas de histórias, memórias, fotos e um
romance sobre a vida post-mortem de um ateu. Para onde foram os personagens, as
paisagens, os roteiros? O velho alter ego também se foi, junto com mulheres
loucas, homens sem destino e ruas da infância. Havia ainda um ensaio, frases de
efeito, e-mails íntimos de Maria Helena e uma longa entrevista com o
antropólogo Darcy Ribeiro.
- Você deveria ter feito um back-up – disse o técnico, sem
demonstrar a mínima comoção pela tragédia do cliente. Como escritor inédito, ele
continuaria inédito não fosse a intervenção de um amiga, cujos conhecimento de
informática compensavam o mau humor. Pediu ajuda, veio apenas uma informação:
“dism.exe”. Prompt e ponto final.
Não deu certo nas primeiras tentativas. Não seria capaz de recuperar
os textos nem refazê-los, pois as ideias pertenciam ao momento em que foram
escritas. Surgiu até a tentação do suicídio, mas queria deixar alguma coisa
para posteridade. Iria tentar retomar a literatura, do ponto de partida,
conforme consta no lado direito da tela. O ponto de partida, no entanto, estava
vazio, como o próprio autor, ao certificar-se da impossibilidade de capturar
seu romance no disco ou no éter, em algum lugar do espaço, no cinturão das
palavras. Seu tema de recomeço seria a perda. Não apenas dos arquivos. A perda
total, definitiva, como a história da morte contidas em seu livro.
Escreveria uma nova trama sem final feliz. Tentou. Sua primeira
história foi sobre um homem que perdeu a memória, mas tinha certeza de nunca
ter tido memória. A história de um homem que teria que refazer a vida a partir
do nada, uma vez que suas lembranças tinha apenas um flash: o instante em que
perdeu tudo. Mais: o personagem chegava em casa tropego como ele chegou.
Haveria um apelo ao absurdo.
Escreveu à mão:
Depois de beber, o homem abriu a porta com imensa dificuldade. A
chave não entrava e ele queria dormir. Pensou em algum problema na fechadura e
não levou em conta a possibilidade de estar na casa errada. Resultado: forçou a
porta, como nos filmes, e caiu direto no sofá. Só acordou às quatro da tarde
com o barulho da campainha. Polícia.
O assunto era a festa da noite passada, segundo o investigador
Nelson. A vizinhança reclamou da gritaria e do som nas alturas. Explicou que
morava sozinho e nunca dera uma festa em casa. Pelo menos não se lembrava.
Estava seguro do mal entendido até perceber a bagunça na sala: copos do chão,
camisinhas em todos os quartos e restos de pizza na sala. Quando viu aquilo,
descobriu tudo: estava em outra casa e, pior, não tinha menor ideia de onde
morava. Diante da nova informação, foi levado à delegacia.
-O sr fez uma festa numa casa que não é sua? – perguntou o
delegado.
- Não fiz festa nenhuma. Quando cheguei a festa tinha acabado.
- E o que o senhor estava fazendo lá?
- Dormindo. Bebi até mais tarde, devo ter pegado um táxi e fui
parar lá. Não prestei muita atenção ao ambiente. Adormeci logo.
- E onde o senhor mora?
- Eu não sei
Primeiro, o delegado pensou em roubo, mas nada fora tirado da
casa. Os donos estavam viajando, conforme apurou o agente Nelson. Depois, o
delegado pensou em amnésia e sugeriu que fossem atrás do passado, seguindo
documentos e flashes da memória. Ele não tinha nem documentos nem flashes de
memória. A única sensação era ter nascido, de fato, diante da porta da casa
desconhecida, com uma chave errada na mão.
O trabalho da polícia foi exaustivo. A partir de seu nome –
Ariosvaldo Dantas – os policiais correram atrás de pistas, inclusive com
recursos de série de TV, e nada havia registrado em seu nome: conta bancária,
impressões digitais, empregadores, mensalidades, CPF, família, DNA, título de
eleitor e imposto de renda. Os outros 227 Arisvaldo Dantas encontrados eram
homônimos, conforme apurou, mais uma vez, o diligente Nelson.
- Seu Ariosvaldo – disse o delegado – não encontramos nenhuma
prova de sua existência como pessoa física.
Por razões ficcionais deveria inventar um passado a partir do
nada ou de uma situação bizarra. Não seria, portanto, um caso de amnésia
convencional. Conversou com o psiquiatra da polícia, um major gordinho e
corado, e cada vez mais corado com sua história. Não sabia onde nasceu, onde
viveu, onde trabalhava; não sabia quem era seus pais e se tinha filhos. O
médico receitou um antidepressivo e sugeriu que ele voltasse à casa. Voltou.
Espaços e móveis, exceto o sofá onde dormiu, eram estranhos para
ele. Rodou pelos quartos, nada. Entrou no banheiro, nenhuma lembrança. Quando
enfim abriu a portinha da dispensa, a memória acendeu. Tudo ali era conhecido.
Produtos de limpeza, pacotes e enlatados, o arranhão na segunda prateleira,
tudo lhe dizia respeito. Sabia de cor as instruções de cada mercadoria, como o
limpa piso, de ação antiderrapante, cuja inalação é perigosa, de acordo com as
precauções. “Procure um médico em caso de ingestão”. Passou a recitar a
composição e as instruções de uso de cada embalagem. Aquelas coisas eram parte
de sua infância, adolescência e idade adulta, senão o todo. Sentiu falta de
algumas marcas. Não havia mais o óleo de Peroba nem cera Parquetina, mas era
como estivessem lá, ou pelo menos estavam em sua cabeça.
- Só recordo dessas coisas – contou ao médico de sua ficção –
Não há gente em minha memória. Só vejo a dispensa. Também lembro de baratas,
achava que conviveu com algumas delas, mas morriam em nove meses. Influências
de Kafka, talvez, mas andou pesquisando sobre esse inseto asqueroso - Blattaria
ou Blattodea -, residente na Terra há 300 milhões de anos.
...
A história estava desandando, como dá para ver, e ele não sabia
como estabelecer uma lógica de um desmemoriado criado em uma dispensa e um
sujeito que formatou o disco rígido. Como aprendeu a falar, a ler rótulos, como
nasceu? Foi aí que recebeu nova mensagem da menina, mais completa:
disme.exe.image.cleanup. Entrou rapidamente no computador, sem muita esperança,
e de repente a tela iluminou-se com todos os documentos antigos, não sei
quantos gigas, sem uma vírgula a menos.
Passou da depressão á euforia. Estava de novo com seus textos e
poderia desistir do personagem sem memória. Mas durou pouco. Releu quase tudo
que havia escrito ao longo de anos e não gostou. Tempo perdido. Todas as
narrativas carregavam um conteúdo inverossímil, parecidos com a história da
invasão da casa e da vida na dispensa. Não valia muita coisa. Não valia a pena
seguir adiante. Então, ele voltou para sua dispensa imaginária e trancou a
porta por dentro.
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