Graças
às minhas habilidades mediúnicas, comecei a trabalhar numa editora
espírita como psicografador. No início, coloquei no papel a obra do
doutor Otoniel, falecido em 1954, cuja vida transcorreu entre grêmios
literários e a benemerência. Otoniel ajudou ao próximo e escreveu
livros com instruções para uma existência sadia e útil na Terra.
Morto, continua escrevendo, indicando o caminho seguro para uma
reencarnação de primeira linha. Tem muitos leitores, mas o saudoso
Otoniel escreve mal, em minha modesta opinião de bacharel em Letras.
O texto vindo do além para minhas mãos não passa de um
ajuntamento de frases de autoajuda – tão ruins quanto as dos
autores vivos do gênero.
Tudo
bem. O nobre Otoniel sempre teve um estilo gorduroso, cheio de
parágrafos desnecessários, muito discurso e pouca história. A
morte, no entanto, pouco contribuiu para a concisão e a
criatividade. Era de se esperar que o outro mundo lhe desse temas
fantásticos, revelações retumbantes e a sustança filosófica de
um Dostoiévski. Não. O doutor Otoniel continua escrevendo do mesmo
jeito. O material psicografado revela pouco diferença dos livros
publicados em vida, quase todos pela editora do autor.
O
problema maior, no entanto, é que a editora resolveu publicar
grandes escritores e agora estou às voltas com Machado de Assis, uma
grande responsabilidade. Fiquei curioso, até excitado, com a
possibilidade de levar ao público uma espécie de “Memórias
póstumas de Brás Cubas II”, narrado por um autor defunto de
verdade. Esperei que ele contasse a morte dentro da morte -
metalinguagem com metafísica-, e viesse com a explicação dos
fenômenos do universo de forma graciosa e precisa. Pois morto duas
vezes, como personagem e autor, o novo Machado de Brás Cubas II é
uma decepção. A morte tirou-lhe toda aquela audácia e inovação,
raspou seu sarcasmo, extirpou-lhe a ironia. Cadê a pena da galhofa e
a tinta da melancolia? Não sobrou nada. Nem a geologia dos campos
santos. O espírito do escritor fluminense, psicografado por mim, não
é inferior nem superior ao do doutor Otoniel em termos literários.
Se a morte tudo iguala, eis aí uma prova.
Por
meu intermédio, o incorpóreo Machado ainda se desculpa quando dita
suas linhas. “Estou meio enferrujado”, diz ele. Victor Hugo,
Camilo Castelo Branco e Casimiro de Abreu passam pela mesma crise de
apagão criativo, “perderam a mão”, segundo meus colegas
psicografadores. Pode ser uma fase ruim da cena literária
pós-túmulo, mas desde que Allan Kardec lançou a ideia de que
escritores continuam a escrever depois da morte nenhum morto produziu
algo que preste.
Meu
amigo ateu não acredita nas histórias que me passam Otoniel e
Machado. Sugere um psiquiatra de renome para meu caso, provavelmente
relacionado a perturbações mentais, capazes de produzir
alucinações, e se o estilo dos meus psicografados é ruim a culpa é
unicamente minha. Eu mesmo estaria escrevendo aquilo, guiado por
algum transtorno de baixa qualidade estilística. Discordo. Respondo
que um estudo da USP revelou “resultados intrigantes quanto a menor
atividade cerebral durante o estado dissociativo mediúnico e
concomitante geração de complexos conteúdos escritos”. Meu amigo
rebate, mais condescendente: mesmo que eles escrevessem tenderiam a
repetir o que já escreveram em vida, pois literatura é baseada na
vivência, estado teoricamente inacessível aos mortos. Como bacharel
em letras, aceitei este ponto. A produção psicografada padece do
lugar comum, da ausência de sacadas e de histórias atraentes.
Precisa de renovação, novos temas, talvez um sopro de vida.
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