sexta-feira, 24 de maio de 2013

Os mortos escrevem mal



Graças às minhas habilidades mediúnicas, comecei a trabalhar numa editora espírita como psicografador. No início, coloquei no papel a obra do doutor Otoniel, falecido em 1954, cuja vida transcorreu entre grêmios literários e a benemerência. Otoniel ajudou ao próximo e escreveu livros com instruções para uma existência sadia e útil na Terra. Morto, continua escrevendo, indicando o caminho seguro para uma reencarnação de primeira linha. Tem muitos leitores, mas o saudoso Otoniel escreve mal, em minha modesta opinião de bacharel em Letras. O texto vindo do além para minhas mãos não passa de um ajuntamento de frases de autoajuda – tão ruins quanto as dos autores vivos do gênero.

Tudo bem. O nobre Otoniel sempre teve um estilo gorduroso, cheio de parágrafos desnecessários, muito discurso e pouca história. A morte, no entanto, pouco contribuiu para a concisão e a criatividade. Era de se esperar que o outro mundo lhe desse temas fantásticos, revelações retumbantes e a sustança filosófica de um Dostoiévski. Não. O doutor Otoniel continua escrevendo do mesmo jeito. O material psicografado revela pouco diferença dos livros publicados em vida, quase todos pela editora do autor.

O problema maior, no entanto, é que a editora resolveu publicar grandes escritores e agora estou às voltas com Machado de Assis, uma grande responsabilidade. Fiquei curioso, até excitado, com a possibilidade de levar ao público uma espécie de “Memórias póstumas de Brás Cubas II”, narrado por um autor defunto de verdade. Esperei que ele contasse a morte dentro da morte - metalinguagem com metafísica-, e viesse com a explicação dos fenômenos do universo de forma graciosa e precisa. Pois morto duas vezes, como personagem e autor, o novo Machado de Brás Cubas II é uma decepção. A morte tirou-lhe toda aquela audácia e inovação, raspou seu sarcasmo, extirpou-lhe a ironia. Cadê a pena da galhofa e a tinta da melancolia? Não sobrou nada. Nem a geologia dos campos santos. O espírito do escritor fluminense, psicografado por mim, não é inferior nem superior ao do doutor Otoniel em termos literários. Se a morte tudo iguala, eis aí uma prova.

Por meu intermédio, o incorpóreo Machado ainda se desculpa quando dita suas linhas. “Estou meio enferrujado”, diz ele. Victor Hugo, Camilo Castelo Branco e Casimiro de Abreu passam pela mesma crise de apagão criativo, “perderam a mão”, segundo meus colegas psicografadores. Pode ser uma fase ruim da cena literária pós-túmulo, mas desde que Allan Kardec lançou a ideia de que escritores continuam a escrever depois da morte nenhum morto produziu algo que preste.


Meu amigo ateu não acredita nas histórias que me passam Otoniel e Machado. Sugere um psiquiatra de renome para meu caso, provavelmente relacionado a perturbações mentais, capazes de produzir alucinações, e se o estilo dos meus psicografados é ruim a culpa é unicamente minha. Eu mesmo estaria escrevendo aquilo, guiado por algum transtorno de baixa qualidade estilística. Discordo. Respondo que um estudo da USP revelou “resultados intrigantes quanto a menor atividade cerebral durante o estado dissociativo mediúnico e concomitante geração de complexos conteúdos escritos”. Meu amigo rebate, mais condescendente: mesmo que eles escrevessem tenderiam a repetir o que já escreveram em vida, pois literatura é baseada na vivência, estado teoricamente inacessível aos mortos. Como bacharel em letras, aceitei este ponto. A produção psicografada padece do lugar comum, da ausência de sacadas e de histórias atraentes. Precisa de renovação, novos temas, talvez um sopro de vida. 

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