Eu
tenho certas ideias, mas não quero expô-las em público, pois não
sei se estão corretas, não sou do tipo capaz de ir até o fim numa
discussão, sempre cedo e, mesmo humilhado, dou por encerrada a
conversa, mudo de assunto e no último caso corro para o banheiro.
Com política, a situação se agrava, e se for num bar se agrava
ainda mais, por causa do álcool, e nunca deixou de se agravar, desde
ou antes das tavernas de Dostoiévski, e nesse ponto o escritor
explica bem o caso ao lembrar que as pessoas não têm apenas o
costume e o gosto de divulgar aquilo que pensam, mesmo as coisas mais
sórdidas, os maiores absurdos; querem a imediata concordância.
Então
eu penso que não adianta. Porque se não for assim, da maneira
deles, os cheios de certezas entram em fúria e é possível que
quebrem não só as tavernas de São Petersburgo, mas também a cara
dos divergentes. Tamanha paixão pelas ideias não é novidade para
nós. As brigas se repetem nos bares do meu bairro, todos os dias,
por causa das próximas eleições e de vez em quando em relação à
existência de Deus e à origem do homem a partir do macaco ou de
Adão e Eva. Por isso apenas, bares são reduzidos a destroços,
cadeiras voam nas madrugadas, o sangue escorre nas calçadas. É um
bairro atípico, reconheço, e dadas as características do lugar o
melhor que se faz é ficar calado ou juntar-se discretamente ao grupo
majoritário. Na hora da briga, costumo fazer aquele movimento dos
lutadores de boxe, estudando o adversário, mas só estudando, deixo
a prática para quem se envolveu mais apaixonadamente na discussão.
Por que não fico em casa? Ora, o pessoal é amigo, conheço desde
criança, nasci aqui, embora reconheça o medo de perder alguma parte
do corpo nessas escaramuças. Sou ligado a um lado, discretamente,
mais por amizade, menos por alinhamento ideológico.
A
luta envolve homens e mulheres, velhos e jovens e uma noite bem
agitada é medida pela quantidade de feridos que dá entrada no
pronto socorro. Não há armas, ainda bem, embora duas mortes tenham
sido registradas no mês passado, mas ambas por enfarte; eram
fumantes e conhecidos pelo palavreado em voga nos anos 50, como “a
nação não pode suportar tamanha afronta”. Pois é, vivemos desse
jeito, em eterna conflagração entre grupos de partidos políticos,
uns contra o governo, outros a favor, além dos ateus x religiosos,
mas à luz do sol todos se respeitam. Em nenhum outro bairro é
assim. O mais grave é que os moradores acham natural, como uma
tradição, une façon d'être, o espírito do nosso povo etc.
Tenho
sobrevido sem arranhões nesse pedaço da cidade em guerra
filosófica. Sim, os assuntos são tratados no mais alto nível, a
princípio, e só depois desanda em esculambração generalizada. Aí,
uma simples citação de Voltaire ou Renan Calheiros, até mesmo uma
citação de Renan Calheiros, pode ser motivo de desavença e troca
de socos. Ainda dizem, depois disso tudo, que somos politizados.
Fico na minha, mudo, sem balançar a cabeça em qualquer sentido, mas
na verdade acho tudo isso muito exagerado. Poderia ser igual ao
bairro vizinho, onde dia de eleição parece dia normal, não tem
gente de perna quebrada e sem dentes, como aqui teve, no último
pleito.
Minha
neutralidade é notada como covardia. Não ligo. Guardo minhas
ideias, solto umas aprovações discretas para minha turma e seguro
as coisas mais sombrias para meu próprio consumo. Nem digo que não
vale a pena correr risco físico por causa de uma opinião porque já
se trata de um posicionamento político, uma declaração de fuga do
debate, e portanto sujeita a agressão.
Tenho
todas as críticas possíveis a esse comportamento classicamente
provinciano, mas no fundo da alma vem uma onda dizendo que, no fundo
da alma, eu gosto daqui. Quem é do bairro tem isso no sangue,
ninguém sabe explicar, e mesmo que eu tenha menos, sou apenas
observador, vejo um mundo fervendo na minha frente, pessoas vivas e
em movimento, paixões incontroláveis e cadeiras voando na
madrugada.
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