Quando
acordei senti a mão pesada em minha testa, tomando a temperatura. Não tinha
febre, acho, apenas via o clarão cegando os olhos, luz estourada e, aos poucos,
a imagem ainda em formação: quarto branco de hospital. Cena batida, eu pensei,
deixando de lado as razões de estar ali. Logo viria alguém e veio. “Você esteve
morto”, disse a enfermeira ou médica, buscando minha ajuda para entender o que
ocorrera antes e durante o apagamento. Nenhum flash, memória zero, talvez eu
estivesse nascendo naquele momento, mais ou menos aos quarenta anos, pois não
existia um tempo anterior. Na verdade, ela sabia sobre mim tanto quando eu.
Notei
certa frustração em minha interlocutora de branco. Parecia mais interessada em
vida após a morte do que em minha identidade, sem contar a ressurreição, caso
pouco corriqueiro, por sinal. Se estive morto estaria vindo do nada e nada
teria a acrescentar. A preocupação era outra, mais urgente: eu era um ser com personalidade,
convicções firmes, ideias sobre a vida; faltavam fatos em minhas lembranças.
Faltava-me a própria lembrança. Também não vinha à mente minha imagem; não
intuía como eu era ao espelho.
Em
termos médicos, nada de anormal na volta à vida, informou a mulher de branco.
Exames ok. Menos eu. Comecei enfim a ter recordações, incômodas, e nelas
apareço como personagens de livros que li, sentindo-me na pele deles; eu e meu
nariz adunco. Todo romance tem alguém de nariz adunco. Sou perfeito cavalheiro
no século XIX e perfeito canalha em história mais recente, mas canalha com
classe e tecnologia, especialista em golpes financeiros, ladrão roubando de
ladrão, ou seja, o mocinho. Ela conhecia alguns textos, cujas falas recitei. No
entanto, preferiu tratar o caso como delírio, afastando as chances de
metalinguagem. Insisti que não era uma coisa nem outra. Eu sentia dores
físicas. Fui apedrejado em Jerusalém e ferido na praia de Omaha, para citar
dois exemplos. Parece ter sido ontem ou há minutos, está escrito.
O
problema foi apresentado, vamos ao conflito, em busca de solução satisfatória,
conforme ensinam os roteiristas. Eu estava ali, indefeso, tentando encaixar o
episódio nas histórias literárias. Nada. Pedi então para saberem se eu existia
para o mundo dos vivos. Tiraram fotos, impressões digitais, sangue e em seguida
checaram em todas as instâncias. Nada. A partir daí levei em conta a
possibilidade de estar morto, ainda, para sempre. Além de mim, só havia uma
pessoa na sala, a mulher de branco. Branco=fantasma. Só que ela não combinava
com enredo de terror - era corada e viçosa, pernas capazes de distrair a
atenção de um zumbi amnésico.
Não
é isso. Eu e os personagens que representei nunca acreditamos em milagres.
Estava vivo, sim, depois de um período em estado de coma. Nessa hora, a mulher
interrompeu:
-
“Não era coma; era morte mesmo”.
-
Quando tempo? – perguntei
-
Não sei ao certo, não estava de serviço nesse dia. Ouvi falar em seis meses.
Ninguém sabe seu nome nem de onde veio.
Meu
Deus, bati o recorde. O único caso conhecido, mas nunca comprovado, não passou
de três dias e até hoje é notícia. Estava com um nó difícil de desatar. Talvez
o longo período morto tenha deixado sequelas, como a perda da memória,
embrulhando minha cabeça em páginas de Graciliano. Estranho não ter ficado
podre. Estranho não estar tão preocupado com minha situação delicada. Adiantou
a moça que eu havia sido congelado para um estudo e, de repente, no meio de uma
conversa de médicos, levantei da mesa cirúrgica e pedi água. Não me lembrava da
mini ressurreição, anterior a esta. Ela, a mulher de branco, era única
referência real da memória.
Por
isso, as dúvidas voltaram, ainda sem o medo que a ocasião merecia. Não era um indigente,
pelo menos não me sentia como tal, nem me sinto, agora, contando minha
história. Havia uma aura aristocrática me cercando neste quarto e continuo
nele, no presente momento, com sinais vitais preservados. O coração bate, o
sangue corre, os olhos exploram o teto e, vez por outra, o corpo da médica. Fora
disso, nada (Continua).
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