Os
personagens devem uns aos outros, especialmente dinheiro, e antes do meio da
história há uma crise de liquidez, uma pobreza extrema, despejos, fugas, lares
desfeitos. Os mais velhos e doentes morrem sem repercussão. Outros se viciam em
drogas e bebida até deixarem de ser o que são e rumam para o desfecho quase
desfalecidos. Alguns pedem esmola em parágrafos inteiros, justificando a
penúria com longas citações filosóficas, tomando também de empréstimo trechos
de Ivan Turgenyev. Agora, estão reunidos no centro da cidade, numa convenção
literária carregada de niilismo. Em Otília, o corpo dói inteiro, provavelmente um
tumor. Alberto perdeu um braço. Aloísio começou a urinar sangue. Manoela –
outrora a musa do grupo - está tuberculosa.
Tanto
sofrimento e ninguém chora, não acredita na compaixão do senhor, não crê em
deus - sempre escrito em minúsculas, em papel de embrulho. Sem a Divina
Providência, uma injeção de recursos, via Lei de Incentivos Fiscais, seria uma
solução. Todos precisam de um projeto. Sem projeto não há vida para os
escritores miseráveis. O problema é que as roupas esfarrapadas dificultam a
captação de recursos. Quando chegam às empresas, atrás de patrocínio, são
expulsos por seguranças.
Os
que vivem um pouco melhor, com lugar para morar, também estão ameaçados. Dividem
casas velhas com miseráveis iletrados e, de repente, descobrem que não são
bem-vindos no lugar, têm dois meses para arrumar outro canto, e eles também
terminam se juntando ao seminário de rua, a Flip dos excluídos, para discutir a
obra de algum desgraçado da mesma espécie, de Lima Barreto a Ericsson Luna.
Muitos
deles dormem em qualquer brecha, sobre caixas de exemplares de livros
encalhados. Investiram tudo na edição, mas na hora de colocar o produto nas
livrarias esbarraram em distribuidores, baixa margem de lucro e desprezo dos
cadernos de cultura. Há opúsculos de gráfica rápida, mas tais publicações nunca
chegaram às livrarias e nunca chegarão. Se boas histórias estão ali, não
interessa; interessa a apresentação, o nome, nem precisa ser escritor. Além
disso, a escrita miserável não levanta a autoestima do leitor. Pelo contrário,
só há lamentos, reclamações e pessimismo nos textos escolhidos de Assis da Mata
e nos poemas de Maria Fontela. Os dois tinham algum dinheiro, antes da vida
literária, e nem mesmo o papel escrito a lápis hoje é suficiente. Então, apagam
e escrevem novos textos, no mesmo papel, como num palimpsesto.
Ainda
bem que neste ambiente insalubre todos se respeitam, sem contar os diversos
casos de arrebatamento, aqueles em que o sujeito é capaz de usar expressões
exclamativas do tipo “que saber jurídico!” ou “quanta erudição!”, ao referir-se
ao mais respeitado de seus pares, também um pária, mas capaz de ombrear com
todos os imortais da academia. Há uma liturgia, portanto. Apenas quando é hora
de catar coisas no lixo é que essa convivência perde força, mas o primitivismo de
atirar-se aos rejeitos pode resultar em anotações espirituosas e analíticas
feitas por gente realmente capaz de transcrever o lixo para a literatura e
vice-versa.
Pobreza
em estado puro, recheada de prosa articulada. Eles formam uma espécie de
coletivo – a Irmandade dos Miseráveis de Letras (IML) * -, mas cada um com sua
dor, escrevendo histórias sob e sobre marquises e cobertores velhos. A
literatura miserável surge à margem das editoras, das redes de livrarias e não é
encontrada em versão digital. Como negócio não tem futuro. Ali ninguém tem
futuro nem está preocupado com isso.
*A IML foi criada, no mundo da ficção, pelo
contista Cláudio Parreira.
Um comentário:
Lula, fui na Sariva, fui na Cultura, fui na Imperatriz. Em nenhuma das três encontrei seus livros: "todo dia me atiro" e "iberê".
Por gentileza, já que vc aqui (Recife) lançou -no Central- seu último, onde, em que livraria da cidade você os deixou para que a gente possa encontrá-lo para adquirí-lo?
Grato,
Macedo
Postar um comentário