O homem morrendo, se
estrebuchando, vendo cachorros latindo adiante e em seguida mais perto, até
zunir no ouvido, causando dor e vontade de apressar as coisas. Mas, calma,
ainda restam uns tremores e a falta de ar - buscando o ar que não existe,
esperando a próxima reação. Dele, um urro; de cantos mais escondidos, uma
confusão de ideias, conceitos e argumentos que o homem morrendo tentava
resumir, no desespero, agarrando pedaços de explicações num momento cheio de
mistério ou vazio, ninguém sabe. Suas últimas forças estavam voltadas para a
sobrevivência de alguma frase redentora, uma pérola, um pequeno big bang para
acertar as contas com este mundo. Corredores, macas, gritos, anestésicos
compondo um espaço de espelhos e labirintos, como pedem os críticos. Morte
literária e morte real num mesmo plano, ineditíssimo, mas agora possível,
graças às novas tecnologias e à disposição exemplar do autor moribundo.
O homem morrendo pensou em Malone Meurt*, já escrito e descartável; não era momento de influências
nem citações. Queria traduzir o turbilhão, moldar o derradeiro acontecimento de
uma forma mais clara e brilhante, pois ainda lhe restava vaidade, a força
imensa e máxima da natureza humana. O projeto, no meio da agonia: deixar boa
imagem, mesmo naquela situação, mesmo sentindo-se inferior e humilhado diante
das preliminares da morte. Olhares piedosos eram piores do que deixar de
existir. Depois, concluiu: o desfecho, no entanto, é igual. Tudo cessa para
todos.
Estado difícil para
elaborações, mas ele seguia assim mesmo, aproveitando intervalos das dores,
intervalos mínimos, para dar-se à tarefa de elucidar e a tarefa de elucidar se
sobrepunha até mesmo ao medo e à tristeza de ir-se. Iria morrer sem emoção,
objeto confuso mergulhado no nada. Do lado de fora não havia mais esperança.
Desligaram os aparelhos, mas o coração não parou de bater. A cabeça ainda
estava envolvida nesses temas quando o médico voltou para replugar o homem que
estava morrendo, e nesse instante nem tanto, porque ele se atracou ao último
suspiro, transformando a pequena dose de ar numa espécie de brisa, depois num
tornado entrando pela garganta e ventilando os pulmões. Aos poucos, os corpos de branco foram
ganhando corpo, uma luz fraca iluminou o quarto do hospital e o milagre estava
feito.
De volta a casa,
saudável, o homem sentou-se para escrever sua experiência. Passou ali alguns
anos da sobrevida, empenhado na produção de um prelúdio para a morte, longe de
amigos e parentes. Tentou de todas as formas e conteúdos, revirou o idioma,
garimpou palavras certeiras, andou em volta de si para encontrar o esqueleto da
história e não chegou aonde pretendia ou imaginava. Não houve tempo para
resignação. Só havia a vontade de retornar àquele momento crítico para tentar
novamente construir sua obra póstuma.
* Malone Morre (Samuel Beckett,
1951)
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