Dolores,
Nem
sei começar. Nesses anos de separação
ocorreu um monte de coisas fora do meu controle. Quase morri, estive à beira de
vários precipícios e num deles pulei, um voo, no início, e logo a queda livre,
duas pernas quebradas e aquela sensação de suicida fracassado: alívio de curta
duração e em seguida o medo do ridículo, olhares de reprovação, mesmo dos
amigos, agora afastados, por causa disso. Entrei na lista dos desequilibrados
ou farsantes e uns disseram as maldades de sempre, “queria chamar a atenção”;
outros foram mais cruéis, aceitando o diagnóstico de doido, dado por um médico
especialista em transtornos, e ele perguntou se eu já havia tentado outras
vezes e eu respondi que sim, há cinco anos, quando você foi embora. Besteira
contar a verdade, pois certos segredos não devem ser repartidos com psiquiatras
porque eles vão formando uma imagem negativa do paciente e despacham receitas
cheias de substâncias que transformam a gente em outra pessoa. Virei outra
pessoa e ao parar o tratamento, por contra própria, já não sabia quem eu era
antes, esqueci. Fiquei com a mesma personalidade farmacêutica, mesmo sem os
remédios, num mundo que não fede nem cheira, indiferente ao fato de você ter
ido embora, Dolores, sem mais nem menos.
É
o pior que pode acontecer. Quando voltei para casa naquele dia, ansioso para
cair em seus braços, chorando minha demissão, deparei com uma mulher
decepcionada, meu cargo era bom, por que perdi? Era a segunda vez em poucas
horas, duas humilhações, o chefe e você, ambos me dispensaram. Numa
circunstância dessas, um homem sai para beber, foi o que fiz, e só parei para
me atirar lá de cima, daquele prédio grande em frente do mercado, e depois
vieram os remédios, quase todos os males catalogados pela DSM, o 'Manual
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais', livro conhecido como a
"bíblia da psiquiatria", segundo li na Veja. Lia a Veja porque toda
semana a revista anuncia a cura de uma doença a partir de um remédio
revolucionário, inventado nos Estados Unidos, com lançamento previsto para o
Brasil daqui a dois meses, pois já foi testado em humanos, com excelentes
resultados. Mas o assunto não é este, Dolores, escrevo porque de repente passei
a me sentir como antigamente, carente de sua presença, e pergunto se você vai
voltar.
Paulo,
O
tempo passou para todos, Paulo. Casei, tive um filho e meu marido é médico bem
sucedido. Família padrão, sem sobressaltos, contas fechadas no final do mês,
carrinhos de supermercado, plano de saúde, escola privada, férias no Guarujá.
Tenho sogra, churrascos em família e até a possibilidade herança - o pai dele
tem dois apartamentos e um pequeno sítio e está com 86 anos, idade razoável
para morrer. Então é assim, a vida segue, tranquila, nem preciso trabalhar. É
tranquilidade demais. Passo o dia tentando ler alguma coisa, mas sempre perco a
atenção, me disperso no nada, passo um tempão fora de mim, outra pessoa, igual
a você se sente. A tarde é mais entediante. Vejo TV e me transporto para
programas sem graça, só para não ficar aqui, esperando o marido, todo dia, numa
eterna repetição. A cena é parecida,
pergunto como foi o dia e ele conta, em detalhes, quando minha intenção era
receber apenas um “tudo bem” ou “difícil”, sem aquele enredo comprido sobre
patologias, tratamentos, e os que “foram a óbito”. Ele usa essa expressão, “foi
a óbito”, é insuportável, Paulo, não aguento mais. Pelo menos você variava, às
vezes não voltava pra casa, e quando voltava era bom. Com ele é funcional,
previsível, burocrático, parece consulta com hora marcada.
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