sábado, 4 de janeiro de 2014

Pinguim - I


Conheci Adélia no Réveillon de 2014, ainda sob os fogos, ainda sob a chuva fina lançada por um vaporizador gigante instalado em Copacabana. Os peitões eu não gostei, mas o resto era passável, principalmente as coxas, aparentes sob o vestido branco, suspenso e molhado. Ela sorriu e se aproximou, sem cerimônia, e em poucas horas, depois dos beijos de praxe, sexo dentro d’agua, estávamos voltando de ônibus para São Paulo. Adélia era de lá, eu também, e só na rodoviária soube que ela não tinha sequer o dinheiro da passagem. Paguei as duas.

Minha situação não era tão melhor. Morava entre duas cidades, em casa de amigos ou com minha tia. Adélia pelo menos tinha um lugar dela, de dois cômodos, no cortiço do Jaguaré. Fiquei lá, no colchão de casal. Foi bom, melhor do que eu esperava.

Dois dias depois chegou um cara meio estropiado pelas festas. Foi simpático comigo e andou pela casa abrindo e fechando gavetas, desembarcando coisas e verificando o conteúdo da geladeira, provavelmente um caso de larica. Adélia nos apresentou: “é meu marido. Pinguim”.

A ficha de Pinguim foi passada na hora, por Adélia, na frente dele, sem contestações. Era músico, tinha suas próprias composições, mas sobrevivia como estátua viva de Michael Jackson, na Avenida Paulista. Pinguim não falava muito, talvez por habito da profissão, e ainda cheirava a álcool da passagem do ano. Contou que esteve numas praias, dormindo na areia. Existem muitas pessoas assim, até em São Paulo.

Achei a situação estranha. “Vou embora”, eu disse. “Por que você não fica?”, perguntou a Adélia. “Cai por aí”, completou Pinguim, apontando para um sofá menor do que eu. Não tive coragem de esclarecer minhas dúvidas – eu, Adélia, o marido, as ocorrências em Copacabana etc. Em vez disso, elogiei a casinha. “Muito aconchegante”, eu falei. Era o único elogio possível para o muquifo do casal. Resolvi ficar.

Já era noite. Conversamos na sala, sentados em almofadas. Pinguim continuava meio calado, embora não demonstrasse contrariedade ou desconforto. Quando Adélia foi ao banheiro, ele comentou: “mulher do caralho!”. Assim mesmo, exclamativo. Não parecia uma indireta. Ela voltou e Pinguim não parou. “Não fosse essa daí eu já tinha morrido”. Sem jeito, eu concordava, com gestos desajeitados. Adélia sorriu, convencida.

Quando o casal se retirou, passei a remoer suposições, enquanto tentava me ajeitar no sofá, enquanto Adélia e Pinguim falavam baixinho no quarto. Quase dava para ouvir frases inteiras. Não havia sinais de reclamações. O sujeito chega à própria casa, encontra a mulher com outro homem e ainda convida o intruso para o pernoite. O que é isso? Tentava dormir e não conseguia, pois logo vieram os sons de beijinhos e depois a coisa evoluiu para uma trepada cheia de disposição. Eu já conhecia as reações de Adélia; eram as mesmas com Pinguim. Bateu o ciúme no lado errado. Eu estava com ciúme.  Ciúme e inveja de Pinguim.


Saí de manhã, de fininho, e não dei notícias. No dia seis de janeiro, vi Pinguim de Michael Jackson na Paulista. A estátua ganhou vida e ensaiou uns passinhos de Thriller, deslizando na calçada. 

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