IImaginem um enredo de Janete
Clair, com alguma influência de Nelson Rodrigues, narrado num texto elegante a
que não falta ambição metafísica. Crônica da casa assassinada, de
Lúcio Cardoso, lançado em 1959 e, desde então, colocado no panteão dos mais
cultuados romances brasileiros, tem todos esses ingredientes e algo mais.
Em suas 534 páginas, desfilam
incesto, adultério, suicídio, prostituição, travestismo, histeria,
dissimulação, escatologia, hipocrisia, traição, decadência e morte. Tudo numa
linguagem densa, elevada, prospectiva dos abismos da alma humana.
Claro que o resumo que fiz nas
primeiras linhas é reducionista. Acabo de ler o livro agora (não vou mentir,
como vejo fazerem por aí, e dizer “reli”...) e ainda estou impactado, para o
bem e o para o mal. A trama folhetinesca é digna da ex-grande dama das
telenovelas, mas a profundidade psicológica dos personagens vai mais além. De
Nélson Rodrigues, herda a capacidade de expor sem pudor a canalhice humana,
porém, ao invés de lidar com as almas suburbanas do dramaturgo
pernambucano-carioca, trata dos conflitos de uma aristocracia rural decadente.
E a linguagem é muito mais burilada do que a desses dois autores, emulando em
alguns momentos as construções verbais-filosóficas de um Proust. Não é pouco,
embora escorregue, aqui e ali, em um registro típico de pulp fiction.
A crítica costuma afirmar que a
“obra, de forte matiz psicológico, inaugura na literatura brasileira um
mergulho no cerne do indivíduo moderno, onde os dramas, as dúvidas e os
questionamentos pessoais sobrepujam a realidade”. Também ressalta que se
integra “numa vertente mais geral da literatura brasileira, caracterizada pelo
subjetivismo, que daria a literatura de, entre outros, Clarice Lispector” (não
à toa, ela manteria uma conhecida ligação amorosa platônica com Cardoso nos
anos 60).
A estrutura romanesca é
razoavelmente complexa, com algumas inflexões no tempo, e apresenta a mesma
sequência de acontecimentos sob diferentes pontos de vista, como Lawrence
Durrel já radicalizara, poucos anos antes, em seu Quarteto de Alexandria. Para
isso, vale-se da técnica hoje chamada polifonia: nada menos de 10 narradores se
revezam na tarefa de contar o drama (quase tragédia) da influente família
Meneses, por meio de diários, cartas, confissões, “narrativas” e “depoimentos”.
Dos personagens centrais, apenas dois – o chefe do clã e o jardineiro – não têm
voz própria. Questões metafísicas, como a vida, a morte, a verdade, a traição,
o pecado, a própria existência de deus, são debatidas recorrentemente ao longo
do texto. Tudo permeado por uma poética cintilante, a que não falta uma dose de
obscurantismo e muita divagação, realçando com maestria a atmosfera de pesadelo
e morbidez da casa/família arruinada.
Trama folhetinesca? Vamos aos
fatos: na Chácara dos Meneses (a tal casa assassinada), numa cidadezinha dos
grotões mineiros, em meio a aléias, alameda, fontes quebradas, pastos
abandonados e ruínas, vivem o autoritário Demétrio – o irmão mais velho, chefe
do clã - e sua esposa Ana, uma mulher apagada que lhe foi prometida desde
criança; o irmão Valdo, um abúlico lorde sertanejo; o irmão Timóteo, obeso e
estigmatizado, praticante de cross-dressing avant la lettre (veste-se
permanentemente com as roupas da mãe e por isso é trancafiado no seu quarto) e
a governanta Betty. O elenco aumenta quando Valdo, numa viagem ao Rio, conhece
a belíssima Nina, a protagonista da história, que vive com o pai entrevado num
hotel de segunda categoria e tem uma estranha relação com um velho oficial que
lhe cobre de mimos aparentemente em troca apenas da companhia de uma bela dama.
Valdo se apaixona, casa-se com ela e a leva para viver com seus vestidos
glamorosos na arruinada mansão interiorana. Misto de Ema Bovary, Capitu e lady
Chatterley modernas, Nina é a personagem mais complexa, mesclando amoralismo,
crueldade, fascínio e inquietações. Na chácara, torna-se vítima e carrasco dos
Meneses, afrontando costumes e mentalidades estratificadas com sua
personalidade exuberante e contraditória. Nina apaixona-se pelo jovem, louro e
taciturno jardineiro da herdade, com quem mantém um escandaloso caso, somente
não percebido pelo marido, Valdo. Demétrio – o Meneses mais velho – por seu
turno apaixona-se em silêncio por Nina, numa relação de amor e ódio, e ao
descobrir seu affair com Alberto, o jardineiro, escorraça-a da casa. O jovem se
suicida, para terror de Ana, mulher de Demétrio, que também secretamente amava
o subalterno e tinha uma relação de admiração e repulsa pela rival.
Nina volta para o Rio, grávida de
Alberto, lá tem um filho, que depois passa a ser criado pelo pai presuntivo no
ambiente sufocante da fazenda decadente. Quando o filho, André, já é um
adolescente taludo, Nina volta a viver com o marido e passa a ter relações
incestuosas com o rebento.
Tudo isso não é contado
linearmente como aí em cima, mas vai se desnudando aos poucos, nas narrativas
cruzadas dos vários personagens, ao longo do tempo, com desdobramentos cheios
de suspense. Curiosamente, o discurso narrativo de todos os personagens tem o
mesmo diapasão, o mesmo vocabulário refinado, a mesma profundidade psicológica,
a mesma abordagem metafísica, seja o do jovem André, do farmacêutico, do
médico, da própria Nina (por meio de cartas ao marido Valdo e ao antigo amante
do Rio), do padre Justino ou mesmo da obinubilada Ana. O resultado é de uma
artificialidade berrante. É como se todo mundo tivesse uma cultura refinada e
escrevesse de forma espantosa muito acima do nível das gentes.
Essa estratégia narrativa também
incorre em pequenos deslizes, tipo uma personagem, numa carta, contar um
acontecimento sobejamente conhecido por ela e seu interlocutor, ou descrever um
ambiente onde se passou algo, com minudências despropositadas, evidenciando a
intenção do escritor de passar certas informações ao leitor. É o caso, por
exemplo, de uma carta de Nina a Valdo em que relata detalhes arquitetônicos do
pavilhão da chácara, que o marido deveria estar careca de saber.
O início do romance é um trecho
do diário de André contando sua paixão avassaladora pela mãe, que acaba de
morrer no casarão. A narrativa do rapaz que, como a mãe, não se atormenta com
culpas, tem uma carga erótica arrepiante. A agonia de Nina, literalmente apodrecendo
de um câncer que exala um odor pútrido pela casa, que debaldemente tenta-se
amenizar com perfumes e colônias, é dos momentos mais pungentes e grotescos da
literatura brasileira. Com direito a uma cena de sexo entre o filho alucinado e
a mãe agonizante.
O velório de Nina, embrulhada num
lençol e colocada sobre a mesa de refeições da sala, é o clímax do romance. Com
as entranhas da velha casa (da família) dolorosamente expostas à curiosidade
pública, desenrolam-se cenas inauditas: Demétrio, sempre preocupado com as
convenções e aparências, convida o Barão, a maior potestade da região, que
chega com um bornal a tira-colo e se põe a comer empadas compulsoriamente; numa
espécie de acerto de contas com todos e tudo, Demétrio, o travesti obeso,
adentra o ambiente numa rede carregada por três negros, espalha violetas (as
flores prediletas de Nina, que em vida fora sua única aliada naquele ambiente
prisional em que vivia) sobre a mesa, levanta o lençol e esbofeteia o cadáver.
Em seguida, tem um derrame e cai duro. Quando Valdo, desolado e imune a todo
escândalo, se aproxima para o último adeus à falecida, presencia André disparar
uma cusparada sobre o cadáver da mãe. Tudo muito Nélson Rodrigues, com uma
diferença: Nélson expunha as taras de seus suburbanos com um toque de deboche –
como se dissesse: “Vejam, isso é ficção, é mentira, é exagero, mas no fundo
vocês são assim mesmo”, enquanto Lúcio Cardoso trata os delírios de sua turma
aristocrática com uma seriedade solene.
E quando achamos que já vimos
tudo, há um pós-escrito do padre Justino, dando uma reviravolta digna dos
capítulos finais dos teledramas de dona Janete: quando todos já haviam morrido
ou se dispersado pelo mundo, Ana, a submissa mulher de Demétrio, moribunda num
catre no velho pavilhão deteriorado que fora o ninho de amor de Nina e Alberto,
confessa ao padre Justino também ter tido relações uma vez com o jardineiro e,
como Nina, também engravidara. Convencera o marido a ir ao Rio buscar Nina de
volta e lá, secretamente, tem o filho bastardo. Que vem a ser André que,
portanto, não era filho de Nina. O verdadeiro filho de Nina, chamado Glael,
viveu anonimamente no Rio de Janeiro toda a vida. Portanto, materialmente
falando (embora André achasse que eram, de fato, mãe e filho), não houvera
incesto na relação tempestuosa e adúltera entre os dois.
Falei na linguagem refinada e
densa, quase proustiana do romance. Mas disse que tinha escorregadelas dignas
de pulp fiction. Pra matar a cobra e mostrar o pau, eis a platitude de um
trechinho do pós-escrito do padre Justino, que em outros momentos de sua
narrativa alcança patamares bem elevados:
Sentei-me
a seu lado, procurando disfarçar minha emoção. Para qualquer lado que me
voltasse, no entanto, sentia seus olhos ávidos que me acompanhavam. Aquela
insistência me desagradava, pois se diria que ela se achava à espera de uma
palavra minha, para serenar definitivamente seu ânimo agitado.
Crônica da casa assassinada é uma
obra-prima malograda.
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