Olho para
o céu uma caixa vazia. Quarenta minutos
olhando para uma caixa vazia. Não posso especular sobre o conteúdo, pois há conteúdo – átomos, bactérias, ácaros,
partículas elementares etc – , conforme instruções da
mestra, e não aceito a paisagem estática, a simples contemplação. Pulo etapas e
logo os planetas giram em torno do Sol e o Sistema Solar gira dentro da galáxia
e tudo é engolido por um buraco negro, cuja existência é duvidosa, mas não
importa, não interessa nem o agora, pois estou adiante, cheio de planos para
amanhã, problemas e soluções, antecipação de prazeres e dores. O nome disso é
ansiedade, diz a mestra, diante do meu fracasso meditativo. Vamos tentar de
novo: ; não posso nada além de nada. A mestra
insiste. A ideia é esvaziar a mente e
mais uma vez não consigo e vejo que a caixa é feita de papelão, portanto está
ali uma coisa visível, palpável, dona de alguma história. Papelão. Já ouvi a
palavra muitas vezes em forma de advertência, "que papelão!", falavam,
quando eu fazia uma merda qualquer. Mas o negócio é a caixa e nela devo me
concentrar. Quarenta minutos é uma eternidade.
Uma amiga
sincera, lendo o enorme parágrafo acima, considerou o personagem confuso, tanto
para ele próprio quanto para os leitores e isso está fora de moda, metido a
grandiloquente, acrescentou num tom bem tristonho. Pediu que esquecesse o homem
que não conseguia meditar e escrevesse
uma história mais esquemática, estilo roteiro de cinema, pois é assim agora. Correria
com final feliz. O argumento dela era o seguinte: ninguém lê ruminações de
personagem sem um enredo bom para sustentar a conversa mole. Fiquei espantado
com a crueza do comentário e mesmo assim aceitei arrumar uma história com
começo, meio e fim, entreameada de ação, sexo, violência e o que mais fosse do
interesse geral. Vale lembrar que tais acontecimentos são antigos, do tempo em
que se compravam histórias, e naquela época tão distante eu já estava
desinformado sobre o ofício de escrever.
Comecei. Meu
novo enredo era a vida de um homem comum confrontado com seu passado sombrio.
Faltava criar o passado sombrio e, obviamente, pensei num assassinato, e passei
horas e dias tentando criar um suspenso mínimo com o segredo do cara e nada
parecia convincente, verossímel, encaixável. Poderia ainda envolver o homem num
paradoxo qualquer, num triângulo amoroso, num beco sem saída, num drama
político de grandes proporções. Nada resolvido e apesar disso seguia em frente,
sem saber o que conteria a próxima página, numa enrolação só, ainda com o
personagem ruminando, oferecendo pistas baratas, num processo de construção
humana a ser abortado por falta de pegada e sustança literária. Assim minha
amiga e editora não queria.
De certa
forma o personagem do meu livro continuava tentando meditar e sentia-se como se estivesse num
ambiente gelatinoso, maleável, perfeitamente untado. Havia conforto e agitação dentro de seu
universo, nunca cansaço, e ele circularia nessa gelatiana em forma de
existência por um bom tempo, não importava quanto, pois o momento estava sempre
à disposição; nesse tempo o presente demorava mais para passar. Tudo era motivo
de alumbramento, bastava uma paisagem com música, livro e cinema; bastava uma dessas moças bronzeadas de saia
indiana e o dia e estava ganho; às vezes até o mês. Ele vivia pronto para as
ações da vida gelatinosa. Podia apalpar com força ou deslizar numa espiral fofa
e eterna. Nenhuma matéria entrava em decomposição, pelo contrário, parecia
ganhar mais resistência. O contexto valia para tudo, de seios a situações. No
entanto, quando pensava em seu passado tudo se diluía.
O
problema ainda era a abstração. O homem passava todo o tempo narrando seu
ambiente e sensações e só uma vez ou outra referia-se ao seu trauma, embora
parecesse estar marcado profundamente pelo ocorrido. Outro drama era inventar o
miolo da história, visto que andei enchendo o leitor de alguma curiosidade e
expectiva, pelo menos assim eu achava. A saída foi o assassinato de um
desconhecido, por engano, quando ele pretendia matar o pai e a bala ricocheteou
na quina de uma mesa.
O romance
terminou saindo no final de 1970 e não houve qualquer repercussão na imprensa
nem nas poucas livrarias onde o livro estava à venda. Quase ninguém comprou. Ao
lançamento foram três amigos e minha amiga editora. Houve um clima, na verdade,
porque nos despedimos sem jeito e nem teve a tradicional ida ao bar, como
convém a uma noite de autográfos, no meu caso quase nenhum autógrafo. Pois
ficou uma situação chata e cada um foi para seu lado, sem saber o que dizer
sobre o fracasso do romance, cujos originais já tinha lido, gostado, mas talvez
naquele momento poderiam ter achado que a leitura tinha sido contaminada pela
amizade com o autor.
Fiquei
pensando o que eles estariam pensando. Minha amiga editora deveria sentir ‐se sócia do fracasso. Nos outros, haveria um
constrangimento específico, difícil de explicar, e certamente um pouco de pena.
As pessoas não gostam de demonstrar pena para não ofender pobres coitados como
eu. Por dentro, devem ter avaliado seus conceitos sobre literatura e haviam
chegado à certeza da minha falta de talento.
Trinta
anos depois tentei de novo. Já não tinha mais aqueles amigos do primeiro livro;
não tinha amigos, na verdade, exceto a mestra da meditação, enfim tornada real.
Recomecei então pelo velho personagem tentando esvaziar a mente num dia de
fracasso, à saída da livraria, sozinho e sem leitores. A caixa de papelão vazia
também estava de volta. A mente, porém, já não alcançava a gelatina, o
aconchego úmido das bordas e dos abraços, a eterna juventude de alguns
segundos. Trinta anos depois era apenas uma caixa vazia
e o velho personagem e sua história sem graça. A mestra sugeriu: esqueça
aquilo. Respondi: não posso. É a única coisa que eu tenho.
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