segunda-feira, 17 de março de 2014

A última peça

A última peça

Queixavase das dores e do orgulho ferido. Sentia pontadas nas costas e completa sensação de abandono. Estava ali há muitos anos, entre quatro paredes, ouvindo sons distantes da rua, a vida ao longe, um cigarro sempre acesso. Não tinha planos de deixar o tabaco. Deixaria a fumaça se extinguir, naturalmente, junto com ele.

No século passado, era o homem de teatro, autor de peças muito elogiados e agora esquecidas. Aos 84 anos, morando numa edícula na casa da filha, concluiu que já estava morto, há muito tempo, desde a publicação da última crítica sobre sua obra, vinte anos atrás. "Agora só falta enterrar", dizia, com amargura e cinismo bem estudados.

Durante anos, recusou o papel de velhinho otimista, um terceira idade de anúncio, cheio de netos, sorridente;  preferiu  tantar entre os jovens, assumir um papel mais escandaloso, uma coisa meio Zé Celso. Perdeu. Não tinha jeito, não gostava de ficar nu, tinha uma leitura mais convencional de Shakespeare. Logo os produtores queriam porque queriam autores mais novos e talvez por isso seu nome tenha sumido dos suplementos. Recolheu‐se, então, com a pequena  aposentadoria e ficou, na edícula, ruminando.

O velho sabia, mas não queria ceder. Naquela idade não há mais ideias e até os sonhos se repetem. Grandes obras e ideias surgem na juventude de seus autores. Depois disso, há um repertório de palavras cuja utilidade se resume à observação do passado. Nenhuma interferência num mundo turvo, como sua vista;  nem aventuras amorosas nem corpos suados de jovens atrizes. O conflito  interior agora é banhado por citações e situações históricas ou mitologicas. Não há inovação na narrativa, pois os hormônios responsáveis pela criação crua começam a sumir com o avanço da idade.

Alguns de seus contemporâneos tiveram mais sorte. Ganharam coletâneas, remontagens, remakes, homenagens. Um deles entrou para a academia, por sinal o mais fraco, levado por amizades na política. Outros estão em cartaz até hoje.



Mesmo assim, apesar de tudo, o velho escrevia uma nova peça, numa rotina só alterada pela dor da doença, também corriqueira, ou uma ocasional visita. Noutro dia, um amigo quis dar‐lhe consolo por seus graves problemas de saúde. Os médicos haviam dado pouca sobrevida. Tinha uma relação dificil com a morte. Sentia vergonha de morrer; sentia nojo da decomposição da carne e intuía que todos pensassem assim, lá no fundo. Mas sempre escapava dessas conversas ao observar que aos 84 anos todas as doenças são terminais. "Minha idade é terminal".

Com as forças que restavam, tentava por todos os meios produzir uma peça moderna, cheia de gracinhas na forma e  distante do tom de memória. Sua modernidade, no entanto, tinha ficado lá atrás; não era a modernidade de hoje. Por isso sentia medo; medo de um canto do cisne franquinho, fiasco no último suspiro, despedida melancólica.


A peça saiu. Só que não havia ninguém interessado na montagem, sequer na leitura do texto. Seus espectadores  estavam mortos, cegos, surdos ou senis. De qualquer forma, a tarefa estava cumprida, entre dores e orgulho ferido. A morte, personagem central da peça, sentava‐se na primeira fila do teatro vazio.

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