A última
peça
Queixava‐se das
dores e do orgulho ferido. Sentia pontadas nas costas e completa sensação de
abandono. Estava ali há muitos anos, entre quatro paredes, ouvindo sons
distantes da rua, a vida ao longe, um cigarro sempre acesso. Não tinha planos
de deixar o tabaco. Deixaria a fumaça se extinguir, naturalmente, junto com
ele.
No século
passado, era o homem de teatro, autor de peças muito elogiados e agora
esquecidas. Aos 84 anos, morando numa edícula na casa da filha, concluiu que já
estava morto, há muito tempo, desde a publicação da última crítica sobre sua
obra, vinte anos atrás. "Agora só falta enterrar", dizia, com
amargura e cinismo bem estudados.
Durante
anos, recusou o papel de velhinho otimista, um terceira idade de anúncio, cheio
de netos, sorridente; preferiu tantar entre os jovens, assumir um papel mais
escandaloso, uma coisa meio Zé Celso. Perdeu. Não tinha jeito, não gostava de
ficar nu, tinha uma leitura mais convencional de Shakespeare. Logo os produtores
queriam porque queriam autores mais novos e talvez por isso seu nome tenha
sumido dos suplementos. Recolheu‐se, então, com a pequena aposentadoria e ficou, na edícula, ruminando.
O velho
sabia, mas não queria ceder. Naquela idade não há mais ideias e até os sonhos
se repetem. Grandes obras e ideias surgem na juventude de seus autores. Depois
disso, há um repertório de palavras cuja utilidade se resume à observação do
passado. Nenhuma interferência num mundo turvo, como sua vista; nem aventuras amorosas nem corpos suados de
jovens atrizes. O conflito interior agora
é banhado por citações e situações históricas ou mitologicas. Não há inovação
na narrativa, pois os hormônios responsáveis pela criação crua começam a sumir
com o avanço da idade.
Alguns de
seus contemporâneos tiveram mais sorte. Ganharam coletâneas, remontagens, remakes,
homenagens. Um deles entrou para a academia, por sinal o mais fraco, levado por
amizades na política. Outros estão em cartaz até hoje.
Mesmo
assim, apesar de tudo, o velho escrevia uma nova peça, numa rotina só alterada
pela dor da doença, também corriqueira, ou uma ocasional visita. Noutro dia, um
amigo quis dar‐lhe consolo por seus graves problemas de saúde. Os médicos
haviam dado pouca sobrevida. Tinha uma relação dificil com a morte. Sentia
vergonha de morrer; sentia nojo da decomposição da carne e intuía que todos pensassem
assim, lá no fundo. Mas sempre escapava dessas conversas ao observar que aos 84
anos todas as doenças são terminais. "Minha idade é terminal".
Com as
forças que restavam, tentava por todos os meios produzir uma peça moderna,
cheia de gracinhas na forma e distante
do tom de memória. Sua modernidade, no entanto, tinha ficado lá atrás; não era
a modernidade de hoje. Por isso sentia medo; medo de um canto do cisne
franquinho, fiasco no último suspiro, despedida melancólica.
A peça
saiu. Só que não havia ninguém interessado na montagem, sequer na leitura do
texto. Seus espectadores estavam mortos,
cegos, surdos ou senis. De qualquer forma, a tarefa estava cumprida, entre
dores e orgulho ferido. A morte, personagem central da peça, sentava‐se na
primeira fila do teatro vazio.
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