sábado, 29 de março de 2014

A última sessão de cinema


A perda de equilíbrio e a queda. A cabeça bateu na torneira e o sangue escorreu no chão branco do banheiro. Final alvirrubro, tontura, escuridão e o início do filme com as memórias do quase morto. O coração parou de bater, os pulmões pararam de trabalhar, mas a projeção estava nítida, colorida e tinha letreiros, como no cinema dos vivos. Elenco enorme e lista de patrocinadores. Meryl Streep no papel da mamãe e direção e roteiro do próprio agonizante. Direção segura, diga‐se, apesar das condições desfavoráveis. Quem reclama das dificuldades para fazer cinema no Brasil não imagina o que é isso.

Duas horas compactadas em alguns segundos. A morte e seu poder de síntese. O autor estava gostando; só lamentava ser o único espectador. Pena não ter feito o filme enquanto estava vivo, pois diante de dele, ou hospedado nos últimos neurônios, estava um candidato ao Globo de Ouro ou pelo menos a um Kikito, em Gramado.

Deixou a história correr, em seu ritmo frenético, em seu processo lúcido e estruturado, conforme prevê Dr. Sam Parnia, da Universidade de Southampton, especializado nessas produções proporcionadas pela parada cardíaca. Só não apareceu o túnel com a luz branca e acolhedora. Não fez falta. Só a abertura, com música de Nino Rota, pagava o ingresso.

Nessas horas finais não dá para pedir socorro nem o autor estava interessado em interromper a sessão, mesmo se pudesse; queria ver sua obra transcorrendo fora do tempo e do corpo. Cenários magníficos, interpretações perfeitas, enredo encadeado. montagem vibrante, expressão máxima da produção independente. O único porém é que o filme acaba e depois só o escurinho do cinema para sempre. Sessão única. Merecia passar em outras salas, além daquela, intransferível, incorpórea, fora do circuito comercial.


Cinema é a maior diversão e também a última.

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