Quando meu tio subiu as escadas com um tonel
nas costas pensei em Maciste, o homem mais forte daquele tempo no cinema. Ambos
pareciam ter saído de uma academia de ginástica, mas ainda não existiam academias
de ginástica, e se já existissem não
estariam no fim de mundo onde eu passava as férias na minha infância. Meu tio
era enorme e destemido. Um dia entrou em luta corporal com um touro, uns cinco
minutos de vale tudo, e saiu da refrega com um leve ferimento no ombro. O boi
foi morto. Noutra vez, numa briga de bar, enfrentou cinco pistoleiros no braço,
deixando o estabelecimento quase demolido. Como nos filmes de hoje, um dos
pistoleiros foi jogado contra a parede, desmanchou a barreira de tijolos e caiu
tonto no salão de beleza, na casa vizinha.
Morando na cidade grande, achava a terra da
minha avó, e do meu tio, muito mais interessante. O clima de faroeste sem os
truques do cinema me deixava extasiado porque
eu só via faroeste no Cine Excelsior. Lia Faroeste. Adorava faroeste. As
férias tinham tudo isso de forma crua, real e trágica. O cemitério era um amostra
da situação de animosidade, quase sempre em torno de terras, política e
mulheres. Poucas mortes naturais. Num
tour com o coveiro, entre sepulturas simples, descobri que os enterrados
estiveram em conflito entre si, em algum momento da vida, transformando o
Recanto da Saudade num símbolo de vingança. "Aquele matou aquele ",
informou o coveiro, apontando para duas covas.
Nesse ambiente sempre tenso, gostava de sair
com meu tio para vê-lo impor respeito por onde passava, mas também achava bom
quando ele era encarado por uns forasteiros e devolvia o olhar com o dobro de força, às vezes exibindo
discretamente o revólver sob a camisa,
às vezes levantando a manga para mostrar o muque de Maciste. Meu tio
também gostava de Maciste desde que meu avô trouxe para a cidade uma cópia de O
Colosso da Arena, dirigido por Michele
Lupo, com Mark Forest no papel do herói mitológico. Pois meu tio entrava nesses
bares, com cerveja quente, encenando o papel de um Hércules ou de um cowboy,
dependendo da ocasião. Quando ele chegava, a reação usual era o silêncio pesado,
como no saloon.
Meu tio era valente, popular, temido, amado e semianalfabeto. Era saudado na feira, desejado pelas
mulheres, bajulado pelos políticos. Andava com ar
sério, cuidadoso para não abaixar a cabeça e sempre muitos passos na
minha frente. Só mudava no carnaval, quando se vestia de mulher, enchia a cara
e seguia o carrinho de mão, o primeiro
trio elétrico do Brasil, criado por meu avô.
O carrinho levava um rádio, sintonizado numa emissora de Pernambuco e era
alimentado por uma bateria de carro. O povo seguia atrás do frevo e meu tio
fazia trejeitos de Rita Hayworth, embora
parecesse mais com Tony Curtis, em Quando quente melhor. Passava o tempo todo soltando beijinhos no ar,
enquanto as pessoas nas calçadas acenavam com a mão, contendo o riso, e as ´moças se agitavam de um jeitinho bem
anos 60, como fãs dos Beatles, lindamente histéricas.
Quando os negócios começaram a afundar, na
pequena fazenda, ele resolveu sair candidato
a vereador. Foi eleito e não apenas isso. Começou a levar o mandato a sério,
obrigando seus pares a seguir o exemplo, seja por bem ou por mal. A primeira providência foi investigar as
contas do prefeito, afilhado do governador, porque a casa do chefe do executivo
era maior do que a sede da prefeitura. Uma comissão da capital veio para uma
investigar e em pouco tempo concluiu que a casa não era grande; a prefeitura é
que era pequena. Meu tio foi cassado e
processado por calúnia. Reagiu a seu modo: partiu para cima da mesa diretora,
esmurrou o presidente da Casa e passou a quebrar todos os móveis e equipamentos
que via pela frente. Os quadros dos ex‐presidentes
do legislativo municipal foram rasgados a faca e meu só foi segurado quando o
efetivo local conseguiu reforços de um
destacamento da cidade mais próxima.
Meu tio se deu mal. Não entendia o funcionamento da oligarquia,
não conseguia ler os requerimentos, tinha um péssimo assessor — bêbado criador
de curiôs — e terminou o mandato cheio de problemas de saúde, dívidas com
advogados e ameaças de morte.
Nesse tempo eu já não passava as férias no
povoado e estava com outras preocupações. Soube dessas histórias por minha mãe,
quando as lembranças do meu tio já eram apenas curiosidades da família, pois eu
passei a detestar violência, não gostava mais de faroeste e achava o lugar do meus parentes uma terra sem
lei, desviada da civilização.
Só voltei lá depois
de adulto, depois dos trinta, e a cidade
tinha encolhido, pelo menos relação ao meu olhar de criança. O bar da briga
era apenas um buraco na parede, com tres
mesinhas dentro, e a cabeleireira tinha passado
seu ponto para uma banca de serviços variados — cartões de telefone, jogo do
bicho e pequena agiotagem. Meu tio foi o que mais encolheu. Estava na cama,
encarquilhado, magro como Wilson Grey, mas ainda lúcido para
recordar suas proezas: a briga com o boi, bares destroçados, duelos ao
meio dia; histórias que hoje nem sei se aconteceram desse jeito ou se misturaram
em minha cabeça com cenas de faroeste e de Maciste.
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