segunda-feira, 7 de abril de 2014

Direto da lixeira 2 – Dia do jornalista



O velho repórter era um desses retroativos, cheio de histórias de redação, saudosista dos tempos em que os linotipos batiam estacas e os jornalistas podiam fumar em suas meses. Trinta anos de casa e coberturas memoráveis. Bebia muito, como os demais, e costumava reclamar do texto de novatos, sem emoção e sem graça. Quase morava na redação e sua vida particular era um mistério. Mas ele parecia estar no paraíso. Aí foi demitido.

O primeiro baque: a chegada dos computadores. Enormes caixas da marca Atex e com certo grau de complicação para um usuário de máquinas de escrever durante décadas. A partir de então, inserir um título ficou mais difícil do que pensar o título. Sem contar o excesso de comandos, quedas de sistema, textos inteiros perdidos; ele sempre esquecia de salvar ou desconhecia essa possibilidade. Aprendeu, aos poucos, sempre com um auxílio de alguém mais novo, embora continuasse a tratar aquilo tudo como uma conspiração contra seu emprego. Numa manhã, apertou uma tecla qualquer, fixou em itálico e passou a escrever assim por meses. Simplesmente não sabia como voltar ao normal e não deu o braço a torcer. Disse que gostava daquele jeito.

Nessa época os jornais estavam entrando numa era de mais tecnologia do que notícia. Hora de enxugar os quadros, cortar horas extra, promover sinergias – nomes usados então para jogar gente no olho da rua da amargura, com restos do FGTS e uma sensação de fim do mundo. Quando o editor o chamou a seu aquário e soube que estava fora, ele sentiu - se como um beato excomungado, sem chão e sem teto, quase morto. Sua vida, descobriu - se depois, resumia -se à redação. Não tinha amigos fora do jornalismo. De casa para o trabalho; nem conhecia os vizinhos.

Depois de receber a notícia da demissão, desceu para o bar e constatou o pior. O tratamento dos amigos de redação era mais frio e distante. O velho repórter não tinha mais amigos. Enquanto estava no jornal era um deles e agora um era só um demitido, fracassado e ainda agarrado às velhas histórias da imprensa e dele mesmo. Um chato para os novos tempos. Terminou no balcão, sozinho, sem a atenção do dono do bar. O único que veio falar-lhe, com alguma cerimônia, foi o agiota. Queria receber os juros, pelo menos. Naquele tempo, toda grande redação tinha um agiota e um bicheiro.

Fora do jornal, saiu à procura de novo emprego e por sorte conseguiu uma vaga numa assessoria de imprensa. Pensou que o trabalho era mais simples. Bastava emplacar matérias do cliente na imprensa e ponto. Mesmo isso foi difícil. Os antigos colegas prometiam publicar suas matérias e não publicavam e em seguida nem telefonemas atendiam. Outra dificuldade era enfrentar o arsenal de gráficos, análises, relatórios e outros papers carregados de enrolação. Depois veio a Internet e o velho repórter se perdeu na rede, assustado com aquele labirinto planetário. Ainda assim, não se rendeu. Dizia sempre que daquele jeito era fácil. Difícil era antigamente, quando o repórter ia atrás da notícia, embrenhava ‐se na selva para entrevistar guerrilheiros, seguia o rastro de grandes crimes, derrubava políticos com investigações devastadoras. Agora as notícias estão num único lugar. Tudo padronizado.

Ninguém deu bola e mais uma vez ele foi demitido.

O velho repórter pensou em dedicar‐se mais à bebida, reação natural de um rejeitado, mas, não, escorou‐se na vida, entre pequenos negócios, aposentadoria mínima e uma vida regrada e triste. Por fim, estabeleceu-se como motorista de táxi. Não fala mais dos tempos do jornal.


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