Histórias
descartadas por falta de sustança para estender‐se além de seu início já precário. Alguns textos são pedaços
depenados de outros enredos e guardados inicialmente numa pasta quase morta e
depois na lixeira. Funciona como peças num ferro velho. Nesses espaços estão personagem
desinteressantes e alguns becos sem saída. Mas sempre há um jeito de
canibalizar uns trechos, juntar com outros, e desembaraçar pequenas embromações. Para o leitor, pode servir com exemplos
de experiências fracassadas, na forma e no conteúdo.
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Deixou
o trabalho no meio do expediente. Sentia dores por todo o corpo, suava frio e
estava em pânico. A doença, enfim, chegara. A nova moléstia do Ocidente, novíssima,
causada por um vírus ainda não isolado, já havia matado alguns milhões na
Europa. Os meios de contágio não eram conhecidos, apenas os sintomas, muitos,
alguns nem davam para explicar com palavras. Ele chegou ao apartamento e
deitou-se inconsolado com o início do processo de morte certa. Olhava o teto
com olhos de desespero. Não era uma dor que incomodava, embora também existisse
dor. Algo estava preso dentro dele, algo líquido, inchando os pulmões e
ameaçando sair do corpo. Os tímpanos funcionavam como medidor da ´pressão
interna – inflação de uma coisa com moto próprio ganhado espaço no tórax. O
final se daria por inchaço geral, seguido de uma pequena explosão, em tom
grave, mas capaz de sujar o teto que ele observava, esperando o momento, sozinho.
Morte sui-generis, espalhafatosa. Um espetáculo para a medicina e o público em
geral.
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Faltou
o quê? Foco, talvez. Um olhar mais pragmático sobre o mundo, iniciativa,
disposição, paciência, jogo de cintura, esperteza e, como disse Calvino,
leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade, consistência. Quer
dizer, faltou quase tudo nesta sua vida agora quase finda. Talento, sim, você
tinha. Boas ideias também. Mas nada ia adiante e todos os projetos fracassaram.
Não é porque você está nas últimas que vou ficar calado. Você quis saber como foram esses 80 anos,
pois então lá vai: fracos.
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Enquanto os outros pesavam e mediam a carga dramática de cada frase, ele se sentia intrigado com a preferência dos escritores por personagens com nariz adunco. Em quase todos os livros aparecia um ser desta espécie, de preferência acompanhado de rosto macilento e olhar penetrante. Segundo o jornal de Cirurgia Crânio Facial dos Estados Unidos, existem catorze tipos de narizes, mas o adunco, talvez o mais estranho, apontando para a boca, é o que reina absoluto desde a invenção do romance.
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Ele escreveu um livro de memórias
em formato de caixa preta porque parte de sua vida foi gravada, segundo a
segundo, num Cockpit Voice Recorder, desses avião de verdade, registrando não
apenas suas opiniões e histórias, mas a velocidade das corridas matinais, os
batimentos cardíacos e o funcionamentos dos órgãos vitais, a começar pelo
cérebro. Depois de sua morte, tudo foi transcrito e editado e a publicação, com
capa dura e papel couché, vem acompanhada pelo áudio, numa versão compacta,
pois são muitos anos. O pai aviador, morto num acidente aéreo, foi quem teve a
ideia, desde o nascimento do filho, desde a invenção da caixa preta pelo
cientista australiano David Warren, nos anos de 1950. Na gravação, não havia
qualquer indício da causa da morte. Só
divagações sem sentido.
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Nenhum prazer estará disponível a
partir de hoje. Sexo e drogas, nem pensar, pois o racionamento é severo, nossas
energias correm pelo ralo e só a abstinência e a castidade servem aos
interesses da pátria. A autoridade constituída também dispõe dos meios necessários
para impedir vícios secretos e solitários, como a masturbação, o vinho após o
jantar e a literatura. Cortaremos a sopinha dos velhos, o parque das crianças,
a Internet, a TV e as seções de entretenimento dos jornais e revistas. A
proibição vale especialmente para teatros, cinemas e casas de show. Sinais
externos de satisfação – o riso, por exemplo – serão exemplarmente punidos. A
pena de morte foi restabelecida para os casos de orgasmo, embriaguez e
contestação das normas vigentes.
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