Veja, Preciosa, eis o morto. Morrem em
muitos lugares, muitos jeitos, mas ele teve sorte, faleceu, como se diz de
forma macia, e não ocorreu violência nem dor, pois estava em casa, dormindo,
seu Antônio, quase cem anos, idade boa para findar, alívio na família, embora
aquela mulher chore sem parar; a sobrinha,
eu acho. Passei aqui só para mostrar como é que acaba e a pessoa fica. Olha o
nariz, Preciosa, tampado com algodão, sabe por que? Para estancar a saída dos l íquidos, saem por todos os buracos, até do olho e do olho
do cu. Tudo tamponado e se não enterrarem logo começa a inchar, os gases também
querem ascender, sulfeto de hidrogênio e metano, se não me falha a memória. Deve
ser o que chamam de alma.
Disseram que você não pode ver essas coisas, é muito nova etc;
e além disso não tem importância
didática mostrar a uma menina na flor da idade o que acontece quando a flor
murcha. Expliquei, Preciosa, você é diferente, gosta disso, pensava em apreciar
um morto e chegou a hora, a sua e a dele, e não me espanto com sua curiosidade;
pode chegar mais perto; seu Antônio não morde.
A morte, Preciosa, é uma merda. Todo mundo
tem medo dela, até os padres. Contam que os ateus, nos últimos minutos, clamam
por Deus, se convertem rapidamente, rezam o Pai Nosso. Os crentes podem sofrer
ainda mais porque alguns entram na crise da dúvida sobre a vida eterna. De
qualquer forma, a morte é feia, cheia de secreções fedorentas, e há o cheiro
das flores, Preciosa; não combina com a podridão.
Mas não é só ver o morto, não, Preciosa;
agora também é o momento para saber como a gente convive com isso. Tem vários jeitos
e o melhor é não pensar no assunto. Há gente que é o contrário, não tem outra preocupação
mais branda, e fica sempre lembrando do dia que chegará, ao pó voltaremos, e finalmente
pobres e ricos estarão sob a mesma terra e sob os mesmos vermes e de outras
coisas que você vai ouvir falar durante a vida.
E tem o nosso caso, Preciosa. Também
pensamos o tempo inteiro no absurdo do fim, mas tentamos extrair dele alguma
diversão e arte; um sentido, uma ideia, um dístico, um rondó, um haikai. Por
falar nisso, este ano é o centenário da morte de Augusto dos Anjos, aquele
poeta macabro da Paraíba. “Na podridão daquele embrulho hediondo/Reconheço
assombrado o meu Destino!” é a nossa cara, não é, Preciosa? Parece agora, com
seu Antônio morto, no meio da sala.
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