Quando Roberto veio propor aquele negócio eu
tive medo de me tornar outra pessoa. O
negócio era legal, no sentido jurídico, eu
acho, mas se opunha às minhas convicções de vinte e dois anos. Envolvia o
recebimento de comissões e por isso já
era suficiente para despertar minhas desconfianças. Na época, eu ainda era
honesto. Resultado: recusei esta e outras propostas e fui ficando cada vez
pobre enquanto meus amigos ficavam cada vez mais ricos.
Eu considerava a ética a base de tudo, o summum
bonum, a finalidade suprema, como propôs Aristóteles. Minha máxima virtude
veio dos meus pais e de leituras juvenis, entre clássicos gregos e russos e especialmente
Berthold Brecht; menos por seu teatro,
mais por suas inclinações políticas. “Pergunte sempre a cada ideia: a quem
serves?”, eu recitava, a cada tentação, como um crente recita versículos da
Bíblia.
Só pelos quarenta anos a ficha caiu. Uma
ficha enorme e pesada. Estava sendo injusto comigo mesmo. Se há só uma vida,
tenho que retirar dela o máximo possível, inclusive dinheiro, garantia de conforto, pelo menos,
pois eu andava meio solto por ai, sem emprego fixo, morando num quarto e sala. Mas aí fiz outra descoberta: ninguém queria mais corromper um pobre
coitado, ainda mais se ele for conhecido
como incorruptível, igual a mim. Perdi a chance, eu pensei.
Mesmo assim, resolvi procurar Roberto. Encontrei Roberto num restaurante chique,
pagando a conta de uns três sujeitos de paletó e gravata e pedindo nota fiscal
em nome da empresa. Ele marcou para “depois” do almoço e por isso não almocei
naquele dia. Ficamos no bar de sofazinhos encostados na parede e Roberto explicou
que a conversa era privada, sobre negócios, e talvez os caras não ficassem à
vontade. Tudo bem, entendi. Fui direto ao assunto, ainda assim ambíguo,
imitando o Nelson Rodrigues porque achei a pergunta a cara de personagem dele: “Roberto,
o que faço para me corromper? ”
Roberto se fez de desentendido, pensando como reagir e de seu rosto de
espanto saiu uma gargalhada. Era o jeito
dele quando não queria responder diretamente uma pergunta, fazendo de conta que
nada lhe foi perguntado. Por uns instantes
pensei em recuar, aderir à risada, pesei o pós e o contra, e voltei ao assunto
por outros meios. Deixei clara a minha situação no momento, minhas
dificuldades, os cinquenta anos apontando adiante e eu sem um tostão no bolso. Roberto, meu único
amigo, enfim me levou a sério, cheio de teorias
— Os tempos são outros, meu caro, a nomenclatura mudou – disse Roberto. — Os negócios não crescem sem certa
heterodoxia, pequenos ajustes razoavelmente legais, arranjos socialmente aceitos em nosso meio. Com todas as amarras da legislação, os impostos e a burocracia não conseguiríamos
crescer como empresários. Se não crescemos,
não ofertamos empregos, o País não cresce. Dai, a necessidade de sermos mais proativos,
meu caro. Seu problema é ter chegado com
duas décadas de atraso aos novos procedimentos.
Não acompanhou as revoluções do mercado.
Ouvi de cabeça baixa, concordando com ele,
disposto a pegar alguma migalha do paraíso. Roberto não tinha muito a oferecer
a um neófito, mas não saí de lá de mãos vazias. Restou-me a tarefa subalterna de
trazer e levar maletas de dinheiro a parceiros, como se referem hoje em dia a
alguns intermediários em negociações de toda espécie. Roberto tranquilizou-me: é
apenas uma relocação de capital por uma via mais expressa, querendo dizer que
depositar aquela grana no banco traria algum problema com o fisco, apenas.
Comportamento padrão nesses casos, acrescentou Roberto, acrescentando ainda que
dessa forma a moeda circularia de maneira mais rápida, dando dinamismo às
operações em curso e, por tabela, economizando papel, resultando em comportamento ecologicamente correto. O momento me fez acreditar nele, precisava, e suas palavras saíam num tom muito sério
e discursivo; parecia um pregador.
Depois, fui à luta, perdi alguns sentimentos,
entre os quais a vergonha, mas carregava maletas de dinheiro junto a culpas
contraditórias. Estava num processo claramente imoral, longe, bem longe do
jovem ético que fui um dia. Havia também,
de outro lado, as necessidades do homem maduro que vendeu a alma na bacia das
almas por falta de coragem e despreparo. Se era para entrar no esquema, qual a
razão que me impediu de aceitar a proposta de Roberto, feita há 20 anos? Sem
respostas, segui em frente, no mesmo cotidiano das maletas, sem fazer mais perguntas e tentando conforto numa
interpretação torta da frase de Brecht que
li na adolescência: "Primeiro comer, a moral, depois".
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