Quando desceu a cortina sobre
os olhos, o homem sentiu o fim do espetáculo. Olhar era seu único prazer. Não
queria paisagens ou grandes obras da humanidade; queria a visão de calcinhas, pernas rijas das
academias e peitinhos salientes em blusas finas. A cegueira chegou no momento
em que espreitava um apartamento do prédio vizinho. Chegou aos olhos encostados
no binóculo no exato instante em que ela percebeu-se observada.
O binóculo foi comprado à
prestação, em dez vezes, e é um aparelho muito potente graças à sua saída de
pupila de 7mm, capaz de produzir uma imagem luminosa, nítida e rica em detalhes,
conforme o anúncio. Design alemão. Ela é
brasileira quase típica, chegando da praia, descendo o biquíni, se
olhando no espelho; seu quarto tinha uma flâmula do Botafogo e um painel de
cortiça cheio de fotos. O homem atrás das lentes ainda viu no escuro, como
manchas brancas no meio do nada, as últimas cenas de seu foco. Não viu quando
ela cobriu os seios e correu assustada.
O homem estavam pânico e sentia-se
morto porque nem mais as manchas apareciam. Tudo perdia a importância diante do
mar de matéria escura, diante de um futuro sem as pequenas situações que lhes
mantinham vivo. Todas bundinhas sumiriam para sempre, exceto as da memória,
cujo uso iria se tornar enfadonho, daqui a um tempo, por falta de reposição de
imagens. Em sua cabeça, não havia questões morais a respeito do voyeurismo; tudo
se resumia ao espanto frente a um problema congênito, difícil de ser resolvido.
Não era a perda da visão em si que incomodava; era a perda de um específico
objeto observado – um corpo.
No meio de um desespero contido
a força, e também certo alheamento, não
contava com o que viria. Em pouco tempo, a moça bateu em seu apartamento. Estava
indignada, enquanto ele tateava para chegar à porta, se segurando nos móveis,
esbarrando aqui e ali, até encostar a mão na maçaneta. Pensou tratar-se de
socorro médico, mas ele não gritou nem pediu, não fez nada; só fez pensar na
vida de merda que iria levar. Então, abriu e ela entrou, sem pedir licença, "seu
filho da puta punheteiro", ela disse, bem barraqueira, mas ele não
entendia o que estava acontecendo. Berrou o óbvio “sou um homem cego!“
Fosse uma história mais
comprida, tentaria passar páginas e páginas até chegar à cena que se segue, mas
ninguém tem paciência para preliminares hoje em dia. Por isso, logo a moça
estava sentada no sofazinho, perplexa e envergonhada; talvez tivesse errado de
apartamento. Não errou. O binóculo estava em cima da mesa.
- Se você é cego, como me
olhava? – perguntou a jovem, já refeita e curiosa.
- Fiquei cego olhando pra você
– respondeu o homem, sem segundas intenções,
pois nunca esteve perto da arte de seduzir e muito menos estaria
naquelas circunstâncias. Além disso, não sentia interesse especial por uma voz,
embora mesmo assim, no meio desse estado, viesse à mente um pouco de nostalgia
de minutos atrás, do olho na lente, do corpinho brejeiro. As recordações do
mundo visível vinham em forma de estalos. De repente, a intrusa tentou entender a situação.
- Mas, vem cá – ela disse,
quase íntima. – Quer dizer que estou aqui reclamando de um cego que me
observava pelo binóculo? Nesse ponto ele perdeu um rostinho meio em dúvida,
meio safado, numa pergunta que não era pergunta. A moça quase pensava alto,
olhando para ele dos pés à cabeça.
Depois, o diálogo beirando o
absurdo num sábado de calor e ela vestia saída de banho e perscrutava o
interior do apartamento, móveis e utensílios, a luz entrando pela janela,
formando uma faixa de luz no assoalho de taco, além do binóculo. O homem
estranho não parecia tão estranho, mesmo cego recente, pois ficou bruscamente
calmo, conformado, enfim satisfeito por ter ali uma companhia, apesar da lembrança
ainda límpida da moça nua misturada com o moça vestida em sua frente.
Mais adiante quase se entendiam
e o homem passou a contar porque olhava por seu binóculo moças em seu quartos
de janelas abertas. Nada além de uma compulsão ou uma prática, explicou, uma
vez que costumava manter distância e se a pessoa observada não o via, ele não
existia para ela.
- Como não a vejo talvez você
nem exista e sua voz seja apenas um som qualquer perdido no espaço e no tempo.
Tudo pode ser uma ilusão. Só pensamos; eu penso que sou cego e você imagina que
foi observada através daquele binóculo, cuja existência material é duvidosa. Enfim,
ele foi desfilando coisas do gênero, restos de um programa que viu na TV sobre
os mistérios do universo e não duvidaria que voltasse a enxergar apenas
trocando o roteiro dentro da cabeça.
A moça não entendia
perfeitamente a conversa, mas era intuitiva ao ponto de sentir o que era dito.
Dai começou a nascer uma séria amizade, que dura até hoje. Eles se encontram
com frequência, sentam-se diante da TV para assistir especiais de ciência – ela
vê; ele só ouve -, vão cinema juntos e ela faz audiodescrição com muita
propriedade e competência.
Com um pouco de pena do amigo,
vez ou outra ela pegava o telefone e deitada em sua cama ia descrevendo para
ele como estava vestida e logo como estava nua, tentando criar uma fantasia
nova e não adiantava. Ele ouvia sons quase inaudíveis, como uma transmissão de
rádio em ondas curtas, devido à sua ocupação com as imagens mentais da nudez, a
cada dia mais esmaecidas.
O que importava nessa
convivência era a disposição comovente da amiga em procurar um substituto para
o olhar e suas tentativas de reavivar o homem cego de alguma forma. Não
funcionava e pararam de insistir, por sugestão dele, e decidiram levar uma vida
normal, dentro da realidade, sem conjecturas sobre a existência, conversando
sobre amenidades durante o almoço, deitando na grama do parque para aproveitar
os raios de sol. Na hora de atravessar a rua, o homem punha a mão no ombro da
amiga e ele seguia seguro e confiante com sua guia, como se
tivesse sido convidado para os olhos dela.
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