Eu tinha
que me organizar naquele ano estranho, quase fora do calendário, e tentei
começar pelas meias, mas não deu para formar pares. Marcas e cores diferentes.
Juntei as parecidas. Depois, as roupas sujas. Adiantaria lavar sem sabão?
Talvez não adiantasse, mas era uma atividade, uma ocupação de desempregado que
se cansou de olhar para o teto.
Não havia
mais moedas. Com setenta centavos eu poderia comprar um cigarro no varejo. Decidi
parar de fumar. Poderia ainda varrer o apartamento. Pensei: varro, sou
despejado e vou embora. Não varri. O envelope do Fórum estava no chão, aberto. Uma
semana para pagar os aluguéis atrasados; só não tinha dinheiro nem iria ter. Dinheiro
traz felicidade. Dinheiro é melhor do que amor, eu achava.
Dois dias
antes havia vendido minhas coisas: um livro grande sobre pássaros brasileiros,
um teclado de computador, o filtro e o telefone preto e antigo, o item mais
caro. Receita, gasta em menos de uma hora:
47,00. A preços de hoje. Rendeu um prato feito,
uma Coca-cola e um analgésico. Fui perdulário.
Estive no
supermercado e vi as prateleiras. Bons produtos dispostos de acordo com a
lógica dos supermercados. Nos checkstands as pessoas compram por impulso,
especialmente doces. Mais adiante, os produtos destino, aqueles que levam o
cliente para dentro da loja, segundo a Associação de Marketing Promocional. Se
tivesse dinheiro, teria um impulso e compraria um barbeador e um saco de balas.
Foi uma visita rápida e sem sentido.
Voltei
para o quarto para dormir, que é uma boa iniciativa nessas horas. Durmi, acordei
e tudo estava como antes, mas era um dia a mais. De certa forma, foi uma
vitória.
Meus
contatos com as pessoas eram esparsos, cada vez mais raros. Da última vez, ela
sugeriu: organize sua vida, compre um guarda-roupa. Não sabia do principal,
minha demissão por justa causa. Nunca mais a vi. Eu queria dinheiro emprestado;
ela veio com conselhos. Não empresta a amigos para não acabar a amizade. Para
mim é o contrário. Não empresta, tchau, vou continuar a escrever a história das
minhas misérias, num tom fora de moda, tentando imitar autores russos.
Taquei um
texto sobre minha amiga só para fugir da realidade – o despejo e o fim do FGTS:
“Ela me ensinou a usar talheres, pois antes eu comia com as mãos os restos da
casa, farelos caídos da mesa, numa luta feroz com os gatos; ela me ensinou a
forrar a cama e eu já não me espalhava pela sala, como um líquido, esperando o
dia amanhecer, sem lugar para dormir; ela me ensinou a dar nós, calçar os sapatos,
falar em público e mastigar antes de engolir. Depois me ensinou a fazer as
malas e a ir embora ”. Ficou
nisso.
Sempre
achei que haveria uma saída, caso procurasse uma; não era meu caso. Eu
esperava, apenas, ainda pensando nas meias sujas e desacompanhadas, nas caixas
de pizza na sala – sobras de uma era de opulência – e no fim do dinheiro. Precisava
de um emprego, mas não existiam mais empregos, sumiram quase todos no começo do
ano por causa dos ajustes. O meu até que durou, mas vieram as demissões em
massa com o objetivo de acertar as contas públicas. Acertaram as contas
públicas e esqueceram da gente. O governo virou um grande escritório de
contabilidade. Não me refiro ao governo atual nem aos anteriores. Que fique
claro.
O cenário
era esse naquela época perdida. Só sobreviveriam os que guardaram na poupança e
os que viviam de renda, além dos ricos, do reduzido quadro de funcionários
públicos e da polícia. Aos poucos, todos passaram a se preocupar apenas com sua
própria situação, um pesadelo suficiente, enquanto esperavam fazendo besteiras
sem fins lucrativos, como escrever diários e olhar vitrines.
Embora
quase todos se achassem na miséria, minha miséria parecia maior, por ser minha,
pela falta de organização e iniciativa. Não desejava a morte nem a vida. Queria
que o tempo corresse, mas os dias eram longos, pareciam meses, e o incômodo da
fome só não era maior do que a preguiça.
Um dia
saí de casa, segui em frente, num caminho sem paisagem. Continuo andando até
hoje.
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