terça-feira, 26 de agosto de 2014

É só uma ideia



Por que preciso de semanas e meses para resolver coisas que algumas pessoas resolvem em um minuto, bastando um telefonema?  Pergunto isso porque tenho parado para pensar e nessas paradas me vêm algumas explicações bem revoltantes.   Agilização, que é uma palavra horrível,  só serve àqueles cuja malha de relações é precedida de algum dinheiro em caixa ou  cargo público. Não falo de hoje, não;  falo de sempre. Tive umas pendências em determinada repartição e não podia encerrar o assunto, pagando a multa, em prestações, porque outra pendência mais adiante, em outra repartição, impedia a limpeza do meu nome em  serviços de proteção ao crédito. Passei uns três meses nesse vaivém entre órgãos públicos e privados, sem contar o Poder Judiciário, pois algumas contas foram parar no cartório.

Enquanto eu ia e vinha, entre filas e filas, passando várias vezes pela mesma máquina de xerox, correndo atrás de autenticações e fazendo muitas perguntas sobre o andamento do processo; enquanto eu fazia tudo isso e muito mais,  conheci um sujeito que saiu com toda documentação em dia, tudo OK, gastando apenas o tempo de um cafezinho na sala do administrador. Quando ele tomou o último gole, já entrava na sala a secretária, com o problema resolvido debaixo do braço.

Minha revolta não é contra isso, não. Fico puto porque não consigo  o mesmo; criar minha network, fazer amigos, influenciar pessoas.  Às vezes acho que é falta de charme, magnetismo pessoal; ausência completa e definitiva de humor, desleixo com a aparência ou pouco conhecimento sobre o labirinto da burocracia. Mas tenho quase certeza que é a falta de dinheiro, único meio de gerar mais dinheiro, numa quantidade muito além da nossa capacidade de consumo.  Notei nessa peregrinação a grande troca de favores mediante uma graninha para uns e outros, de forma que todos saíam satisfeitos, uma mão molha a outra, e o mundo  não se acaba por causa disso. Pelo contrário, percebo ainda que a eventual erradicação desses costumes terminaria por interromper o bom andamento do processo burocrático em muitas áreas do planeta.

A propina, tirando ética e culpa,  lubrifica as relações  sociais e econômicas e facilita o trâmite de papéis necessários à nossa existência.  Pode ser vista como uma um adicional de insalubridade num salário nem sempre condizente. Eu, por exemplo, quero pouco, pelo menos o suficiente, mas nem isso tem acontecido. Sou então obrigado a reunir todas as forças para enfrentar o longo caminho espinhoso que segue dentro da Lei. Não sei como me apresentar ao seleto mundo da corrupção, pelo menos a passiva; desconheço os rituais de iniciação e o linguajar cifrado dessas pessoas.

Nesse mundo restrito, a competência tem que ser dobrada e todas as culpas podem ser curadas com uma parte de cinismo e outra de filosofia. Outro dia, um conhecido lobista de nossa cidade estava a discutir alguma coisa do filósofo Emmanuel Lévinas, que  um dia perguntou: "por que eu deveria ser ético?". Nem esperou pela resposta e concluiu logo que daria, sim, para viver sem essa rigidez  de regras e códicos e assim ganhar muito dinheiro, usando mais sagacidade do que esforço.

Sonho com uma vida mais folgada, mesmo fora dos parâmetros, porém um resto de decência me faz pensar não apenas em mim. Penso também na maioria das pessoas que passa meses à espera de resoluções, quitações, certidões, habilitações, enquanto um sujeito como esse conhecido meu precisa apenas pagar de um lado e receber do outro, sem perder tempo precioso da vida em batalhas burocráticas contra obstáculos jurídicos que, segundo dizem, são a base da civilização ocidental  etc e tal. A Lei pode ser para todos, mas o descumprimento dela parece reservado a um grupo pequeno e privilegiado.

Na verdade, eu tenho uma tese sobre essas coisas e gostaria de expressá-la num curso de Direito, numa missa, em sindicatos patronais e serviçais, em qualquer canto interessado em ouvir a injustiça que é a  existência de uma minoria cujos crimes não resultam em punição; são aceitos socialmente, como se fossem folguedos populares ou  função religiosa. Eis então a minha tese: melhor legalizar a ilegalidade, deixando claro que a prática de alguns atos ex-ilícitos deverá ser discreta,  delicada, elegante, incapaz de ferir, muito menos matar, e acima de tudo dentro do nível do bom senso.

Dar ou receber comissão, numa troca de favores,  aceitação das duas partes, no máximo com terceiros envolvidos - que mal há nisso?  Qual o problema se o referido ex-crime for aberto ao público em geral, sem distinções de sexo, raça e credo - qualquer diferença? Uns ganhariam mais e outros ganhariam menos, claro, mas aí já dependeria da aptidão de cada qual, interesse pela coisa, jogo de cintura e outros atributos. O importante é que todos teriam acesso às portas certas, aos principais conluios do dia, todas as negociatas estariam nos jornais, quem quiser que se habilite.

- E o dinheiro público? - perguntarão, com certeza. Ora, se todos se locupletam não haverá grandes problemas, exceto algum alvoroço na bolsa, mas esta também estará no bolso, junto com grandes e pequenos acionistas, ascensoristas e offcie-boys. Teremos abalos nas contas públicas, no princípio, porque depois a nova cultura será assimilada e compensada pela distribuição de renda que irá proporcionar.   

De qualquer forma é só uma ideia que surge e vai embora e ressurge sem aviso nesses dias difíceis em que procuro dar um jeito na vida e não conto com uma mãozinha, alguém que mexa os pauzinhos, um pistolão, um parente bem situado. Pior: se encontrasse facilidades dessa natureza não estaria à vontade de usufruí-las pelos motivos supracitados. O resultado é que minha tese se perde no começo da noite, insurge-se contra ela mesma, contradizendo o que penso quando me revolto.     


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