O século XX foi um dos melhores
dos que vivi. Não achei grandes coisas no XIX. A infraestrutura era fraca e as
condições de higiene deixavam a desejar. Sem contar o ressentimento, nascido e
criado nesse espaço de tempo, embora já tivéssemos teares e os melhores
personagens da literatura.Do século XVIII sei quase nada; era criança.
O atual mal começou e começou
mal. Não por causa das guerras, comuns a todos, mas pela indiferença, o
descolamento dos sentidos, a sensação de não estar. Só agora, neste século,
vejo quão relativa é a longevidade. Da luz a gás aos computadores foi um pulo.
Estou em 2014 entre lembranças
de um ano especial, 1920, em que conheci o sexo, algumas drogas e várias mulheres.
Não havia nada disso em 1780, em minha adolescência, e não há neste momento, em
que o homem maduro se torna invisível e sem cheiro. A ele não é dado nem o
direito da melancolia, classificada como doença e não como sensação a
ser vivida, até mesmo apreciada, se cair numa tarde de Montevidéu, em 1954.
As pessoas sumiram das ruas e
se trancaram em vidas virtuais. Todas as novidades são recebidas com enfado.
Sei a besteira que é esse discurso, já
feito em outras eras por gente mais qualificada. Alguns escreviam ouvindo o
prelúdio de Tristão e Isolda no gramofone e ganharam nome e fama. Eu sigo
anônimo, pensando em anos bons, anos ruins, anos mais ou menos.
1920 foi diferente. Tento
escrever sobre este ano há sete décadas e não será desta vez que sairá completo. Há sempre um pé atrás quando se escreve sobre
um determinado tempo, principalmente por causa do medo de ficar datado. O que
acham transgressor numa época pode virar um comportamento comum logo adiante. No entanto, insisto. Em 1920 eu estava numa
pequena cidade histórica, tirando o atraso de um longo sofrimento. Consegui fazer
quase tudo que não fiz no séculos passado, por preconceito e preguiça, sempre
achando que teria tempo, como de fato tive, a ponto de estar vivo até hoje.
Perdi quase duzentos anos esperando por 1920, mas valeu a pena.
1979 foi outro bom. Ano em que
tudo, docemente, parecia dirigir-se ao precipício, mas não. Foi apenas a
entrada na normalidade sem graça que viria depois. Em 1979, o exagero era uma
norma e havia farras inimagináveis para a compreensão humana dos dias de 2014. Já
em janeiro, descobrimos a seguinte equação: somos jovens, sabemos disso, temos
pouco tempo para arder e é agora ou nunca. Não era o meu caso, já passado dos
cem e ainda viçoso. Não lembro de muita coisa por causa da embriaguez constante, mas o inconsciente manda inúmeros flashes divertidos, cheios de ação
e arte, paixão e desejo. Lembro, por exemplo, de noites em um bar e ares de
liberdade. Podia-se fumar o que fosse sem ser incomodado e fazer sexo sem
sentir culpa. Todos nus, tomávamos banho de cachoeira e a orgia tornou-se um
ritual quase necessário. Só digo que gastei uns dez anos em 1979. Mas o estoque
de anos vindouros parecia ser grande. Sabe-se lá se continua assim, neste
século.
Tenho 384 anos. Não sei porque
vivo há tanto tempo. Fui levando, levando e quando completei um centenário
ainda era jovem e disposto e ao mesmo tempo incomodado. Por que meus amigos
morreram tão cedo? Do segundo para o terceiro século eu me acostumei com a
situação.Uma vida longa para padrões gerais, sem dúvida, mas um raio para quem
a vive. Passou rápido. Hoje, existo com essa saudade do século XX e tal
sentimento tem um peso enorme sobre mim. Não ocorreu-me epifanias, alumbramentos e
revelações religiosas, mas depois das grandes guerras passei a sentir o necessário para
a vida: bem-estar. Não o da civilização; o meu, apenas.
Na verdade, foram três séculos
de egoísmo, em que aprendi a não me apegar às pessoas, pois de repente elas
morriam, como morrem agora e sempre. Nem tive preocupações em guardar detalhes
da história nem itens de coleção. Tenho um livro autografado por Dostoiévski,
numa taberna de São Petersburgo; uma das primeiras lâmpadas de Edison e cartas
de Alice (1954), Zelda (1920) e Maria(1979).Esta última, aliás, é uma exceção –
vem se arrastando comigo desde o assassinato de Francisco Fernando. Talvez seja
da minha espécie. Pena que esteja tão recolhida ultimamente.
Devo ter dito a uma delas, Zelda, que não me apaixonaria por uma garota mais nova, numa "piada" que
só eu mesmo entendi; eu era uns duzentos anos mais velho, se não me engano. Obviamente
ela encararia "duzentos anos" como uma maneira de dizer, embora eu sempre fosse
bem discreto em relação à idade. Terminei ficando com Alice até o final de 1954, quando ela morreu
de câncer. Uma pessoa realmente doce, no melhor sentido da praça; ela, sozinha, fez aqueles anos.
E por que recordei dessa parte
da minha? É porque sem as mulheres não teria havido a menor graça nestes
três séculos. Não valia a pena nem
tê-los vivido.
Atualmente, sem saber quantos
séculos ainda terei, resigno-me com musas no passado. O presente século esqueceu
das mulheres irreais e clássicas dos nossos velhos livros. Em troca, há um
mundo de experiências cruamente práticas, como ser dono de um negócio capaz de
gerar negócios, crescer, tornar-se uma potência mundial e ninguém leva em conta
o pesado empenho nessa tarefa que, no final das contas, se tornará sem sentido.
A solução é não falar sobre o assunto. Simplesmente produzimos coisas e
capital, trabalhando como formigas.
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