A velhice
vai afunilando meus espaços de vida, externos e internos, porque não posso
ficar muito tempo em pé nem muito tempo deitado nem muito tempo sentado. De
todo jeito surge uma dor, ou incômodo,
transformando o mergulho na memória também em suplício, pois só existem
pedaços de lembranças. Quando retorno ao mundo de agora, outra vez o
desconforto; nenhuma posição serve nenhum pensamento serve.
Aprendi a
almoçar aos quinze anos, pois antes disso ainda rastejava atrás de farelos e
restos de pizza, quase escorrendo pelas
ruas, sem pai nem mãe, sem ver a cor de dinheiro, sem nada. Ninguém notava
minha presença ou notava como se nota um bicho; nunca liguei. Não conhecia o
outro lado, só o meu espaço, e achava que era isso mesmo - vamos levando até
onde der. O almoço foi um grande
transtorno. Perdi a noção por uns dias, meses, enquanto me adaptava ao Lar dos
Órfãos sem Nome, enquanto me transformava do que era no que sou agora.
Eu era um
pequeno réptil, mas com enorme capacidade de aprendizado, e mesmo na fase do
rastejamento da pobreza absoluta catava umas histórias aqui e acolá, aprendi a
ler, escrevi e escrevo neste momento, bem depois daquele almoço. Porque não foi só comer em prato, com faca e
garfo; foi o começo de verdade, como se antes eu não tivesse nascido.
Ali,
só me rendeu em termos literários, pois o sofrimento foi grande. Mas
quase não tive tempo de sofrer de
verdade; preferi escrever sobre os oito meses embaixo de mesmo teto de
Adélia Pereira, uma prima distante, reencontrada na cidade grande, agora mulher
de inabaláveis certezas, dessas radicais da preservação do meio ambiente,
feminista e adepta da macrobiótica. Com tais predicados, no entanto não era uma
pessoa chata. Pelo contrário. Só não me converti às suas teses porque eram
trabalhosas demais; exigiam uma firmeza moral quase inexistente na época. Eu
estava sem emprego e um homem sem emprego aos poucos vai se tornando um monstro
de Dostoiévski. Não roubei nem matei; escrevi
sobre Adélia algo um tanto grave e descortês, para dizer o mínimo, uma vez que
explorei suas intimidades, sem avisá-la, apenas pela necessidade doentia de
escrever um livro.
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