O vagão tem vinte e oito assentos, ou
trinta, sempre esqueço quando volto a viajar, no dia seguinte, de manhã até o
fim da madrugada, percorrendo estações e gastando tempo em idas e vindas
contínuas no metrô. Embarco às 04h10 e só paro uma da manhã; aí durmo sonhando
com um monte de passageiros. Alguns se repetem e outros somem. Nunca mais vi o
homem de terno xadrez. Pode ter morrido, não anda mais de metrô, mudou-se de
cidade - um lista enorme de alternativas. Minha memória é melhor para as
pessoas que sumiram.
Perguntam
por que eu faço isso, diariamente, há anos, e por que conto isso agora, tentando
me curar das viagens de metrô. Perguntam se sou sadio e a resposta é "não
sei". Tomo remédios por causa da repetição, mas não acredito em
transtorno. É muito mais uma busca. Os passageiros são meus personagens como
para outros são personagens os habitantes de uma ilha ou os franceses do século
XVII. A desvantagem é que os meus não me dão falas, a não ser "com
licença", de vez em quando, principalmente na hora de descer do trem. Em
compensação, deixam aberto o espaço para
tudo, caso do homem de terno xadrez, já usado em tentativas de construir muitos
personagens. O mais presente é o empresário de um trio que fez sucesso na TV
dos anos oitenta.
Muitos dos passageiros são calados e outra
parte é descartada justamente porque falou. Gente que não casa com a história
escolhida ou se remete demais a assuntos de trabalho, entediantes, fluxos de
caixas, lotes recebidos, relatórios de desempenho. Acho, só isso, que a grande
aventura humana pertence ao silencioso, ao de olhar inteiramente perdido, ao
que está pensando em outra coisa além do fato de estar ali, no vagão.
O homem de terno xadrez, solteirão e
inseguro, ou nem tanto, talvez tenha certa experiência de vida - e é longa sua
história de expressivo nome do show business até passar o tempo dos trios de
cantor e de duas dançarinas de saínha. Esse mundo movimentou muito dinheiro e
de repente não movimentava mais um centavo, pelo fato de que as coisas entram e
saem da moda, especialmente no mundo volátil em que estavam os trios e as moças
de saias curtas; muita curtas mesmo, quase nada. Quando tudo terminou,
inclusive o dinheiro, o homem de terno xadrez iniciou uma vida na multidão, sem
carro, todo dia no metrô, ainda tentando bater em velhas portas para vender
shows baratos de mágicos, animadores de festas infantis e conferencistas
motivacionais. De vez em quando se encontrava com os ex-integrantes do trio,
tão envelhecidos quanto ele, metidos em outros negócios: uma das dançarinas
tornou-se dona de uma pequena loja de mercadoria chinesa; a outra agencia
acompanhantes para uma restrita carteira de clientes.
Durante alguns meses tentei extrair mais
alguma coisa do pensamento do homem e me fixava em seus poucos movimentos para
uma descrição mais verossímel do
personagem, na qual não faltariam os tradiconais nariz adunco e o rosto
macilento. Era isso, de fato, pois o homem de terno xadrez parecia doente,
empenhando suas últimas forças naquelas viagens de metrô, quase sempre em pé.
Mais na frente, ele e seus jeitos inventados
por mim, a tendência de minimizar os males, estou bem, tudo certo, era apenas um
jeito de não preocupar os amigos, mesmo no último dia, no metrô, após uma dor,
dorzinha, segundo sussurrou, e ali mesmo caiu duro, entre as cadeiras do trem.
Pode ser assim e pode ser de qualquer outra maneira, como se atirar nos
trilhos, numa cena manjada, mas antecedida de certo conteúdo, cujo final, a
morte do homem de terno xadrez, torna-se apenas parte de uma história que
escorre devagar até se dissolver sem estardalhaço.
De todos os personagens do metrô o homem de
terno xadrez é o mais presente porque senti em seus poucos movimentos certo rito
– ou, como queiram, mania; um padrão na contração dos olhos, forçando as
pálpebras atrás de uma escuridão capaz de apagar pensamentos. Ou talvez fosse
apenas um homem de poucos amigos, que prefere que assim seja, não lhes fazem
falta, pois quer mesmo é solidão, distante ou perto, conforme lhe convenha. O homem também inspirava esse modelo ao suspirar,
mas logo caindo em si e logo retornando à sua viagem interior.
Ele esteve no ponto para dizer o que
pensa, ou penso que esteve, e nessas horas eu siguia em frente, dentro da
cabeça do homem de terno xadrez, inteiramente voltada para as áreas de escape,
entre boas recordações da vaidade, quando ela ardia, no tempo dos shows lotados. Havia ainda uma imaginação
ainda mais fora da realidade, nem no
passado nem no futuro, o velho paraíso de cada um. O dele tinha mulheres,
infância e uma sinfonia alpina. Pai, mãe e uma casa; a casa perdida num negócio
mal feito. A essência do pensamento do homem de terno cinza era, ou é, o que
não existe mais.
Há ainda o homem de terno xadez metódico
milimétrico, capaz de saber quantos minutos foram gastos em atos cotidianos, em
tanto tempo lavo a barba em tanto tempo fumo um cigarro, dessa espécie de pessoa
sem abstração, apenas de atos uns atrás
de outros. Não consegue, por isso,
divagar sobre amor, ódio e culpa.
Este conta, de si para si, o número de
cadeiras do trem, o número de pessoas de óculos e às vezes o número de estações
em que se desce pela direita. Um personagem descartado por se aproximar do
diagnóstico dado a mim pelo médico.
Aos poucos eu mesmo me torno personagem do
trem, encenado com passageiros de variados formatos, de universos
diferentes, de outras línguas, um romance rico em diversidade, mas de
condensação difícil, conforme ficou claro na última leitura. Faltava quase tudo
ao ator principal, de harmonia a profundidade. De repente, o empresário do trio
torna-se discursivo em demasia, numa imitação sem sucesso de O Idiota. De repente, o homem de terno xadrez eram
tantos e diversos, e ainda são, a ponto de não haver mais controle sobre seus
movimentos.
Homens de terno xadrez à disposição de
qualquer história, um exército em condições de encher todos os
vagões, cada um diferente do outro e
mais numerosos do que todos os outros juntos. O honesto submete sua consciência
a longos interrogatórios - quer ver se falhou em algum momento -, enquanto o
homem de terno xadrez desonesto só pratica pequenos delitos, em nome da sobrevivência. Vai a bocas livres,
rouba sachês de açúcar nas padarias,
atrasa o aluguel.
Contei ao médico sobre a invasão de homens
de terno xadrez, inclusive ele, o médico, era um deles, porque, além de não ser normal, a profusão desses
tipos de aparência igual estava atrapalhando minha história, pois homens de
terno xadrez já subiam pelas paredes, riam na TV, desciam pelas torneiros.. Embora
conhecesse o personagem, de tanto que
falei nele, o médico resolveu aumentar a dose do remédio. Aceitei porque
pretendo me concentrar em apenas em um homem de terno xadrez – apagar tudo,
começar de novo e trazer o homem de terno xadrez de volta ao trem. Em pé,
diante da porta, nariz adunco, rosto macilento.
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