Era
meio dia quando chegamos à cidadezinha calorenta. Ninguém na rua, portas
fechadas para o almoço, latidos esparsos. Mais uma volta pelo centro e o mesmo
cenário se apresentava, sem sons humanos; apenas a batida de asas de pássaro. Adiante,
ao lado da prefeitura, havia um pequeno terreno baldio com máquinas de
terraplenagem tomadas por ferrugem e mato. O trator lembrava um navio
naufragado no seco; no lugar dos peixes, lagartixas.
Cidades
pequenas têm esses silêncios do meio dia, mas ali o silêncio era maior. Quase
todos já haviam abandonado o município, deixando para trás alguns renitentes. A
delegacia fora desativada e em breve não haveria nem água nem luz à noite. Na
verdade, não haveria mais nada.
Batemos
numa dessas portas. Palmas e "ô de casa", como diziam por lá. Sem
resposta. Na segunda, um velho chegou arrastando suas sandálias num corredor
enorme e escuro, decorado com fotos colorizadas, azuladas, da família. Chegou
com cara de sono e nos olhou sem surpresa. Informamos que era o último aviso: a
cidade seria inundada para a construção de uma barragem. Lá na frente, a
jusante da represa, o novo vilarejo estava pronto para receber os munícipes.
Casas novas, posto de saúde e mercadinho. O homem baixou a cabeça, tomou fôlego
e disse que ficaria com os mortos. Dissemos que os corpos do cemitério não
estavam mais lá. Ele disse que alguma coisa ficou; umas partículas, pelo menos.
O
velho tinha um senso estranho. Explicou que a cidade a ser submersa era sua última
parada porque não iria parar onde não viveu, onde sua mãe viveu, onde não
viveram seus mortos. A vida no novo povoado já seria o fim da vida e portanto não estava disposto ao sacrifício
de um movimento inútil.
Daí
uma questão técnica transformou-se numa questão mais complicada, pois o velho não
via sentido em sair, não arredaria pé nem que fosse a pulso. Eu paro de
respirar, que é o mesmo que morrer afogado, ameaçou o velho. Sei parar de
respirar e sei morrer, reforçou o velho, mastigando um palito de fósforos
com muita calma. Eu mesmo pensei
um pouco, só um pouquinho, nas razões deste último resistente, enquanto ele
continuava me olhando, desta vez mais terno, e assegurou que não queria
atrapalhar a obra, entendia meu ofício etc; só queria o direito de ficar.
Seguiu
o velho com um monte de histórias antigas, a família nas calçadas, a construção
do Instituto Histórico e Geográfico, os tempos da escola primaria, os trovões
de madrugada, as moças do Curso Normal e o cometa que atravessou a cidade, meu
Deus, nunca vou esquecer do rabo de luz estirado no céu, lembrou o velho, meio
emocionado.
Velho
inverossímil, seu rosto anguloso inverossímil, não parava de falar e daí passei
a anotar para o relatório, sabendo que certas partes não eram do interesse da construtora,
e talvez até pensassem que fosse invenção minha, caso desse destaque a tais
alegações do velho, que não parava de falar, bem sereno, daqui não saio nem
morto, disse o velho, quero ficar no fundo, em cima de torre da igreja,
borbulhando um pouco diante do grupo escolar até me deitar no cemitério, debaixo d'água. Vou morrer de qualquer jeito, se ficar ou mudar, então quero morrer
assim, afogado onde nasci, de volta para o líquido da minha mãe.
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