As gêmeas Adélia e Amélia escreveram um romance curioso em
parceria. A primeira partiu do início; a outra partiu da última página. No meio
do livro, as duas histórias se encontraram e se fundiram em uma só. Editado
pelas próprias autoras, a obra não tem título e, conforme o lúdico release das
meninas, é desde já o melhor texto de ficção escrito por duas pessoas nascidas
da mesma gravidez. Amélia demorou a chegar à página cem, o meio-fim, mas quando
avistou sua irmã se aproximando tratou de enviar personagens para o lado de lá,
enquanto recebia outros, plenamente informados sobre os novos interlocutores. Finalmente,
todos estavam enredados no desenlace de uma trama muito bem amarrada.
As duas irmãs são diferentes, em jeito de pensar e
comportamento, daí não serem confundidas, apesar de praticamente iguais na
aparência. Tiveram vidas separadas até os vinte e poucos anos, quando se
descobriram como dupla multi-arte, capazes de transitar em todos os ramos da cultura,
desde a preparação de projetos para as leis de incentivo a saraus spinozanos.
Também fizeram malabares. Agora, elas estão na literatura, nessa inusitada experiência,
construindo um túnel, numa tarefa em que o meio justifica o fim, segundo explicou
Adélia, em entrevista recente, cheia de trocadilhos. Em algum momento, as
jovens escritoras chegaram a temer pelo acoplamento das duas histórias, mas
neste caso nem tudo estaria perdido; teriam dois livros.
O certo é que as meninas carregaram seu fardo direitinho até
chegar às últimas linhas, em sincronia, como nadadoras do Fluminense, embora o
fardo seja leve e, talvez por isso, seja bem mais gracioso do que um
romance-tratado sobre nosso século ou coisa parecida. Elas apenas contam como
veem o mundo, seus divertimentos e pequenos infortúnios. As tristezas e
alegrias do sexo, por exemplo, estão lá, mas sem apelos à culpa quando o
rendimento não é satisfatório. Quase tudo é autobiográfico; daí o interesse
pela obra.
Adélia guarda certo niilismo e se enxerga no futuro como mulher sem
grandes impulsos, tal e qual agora. Quando começou a escrever, sem uma ideia
prévia, logo se lembrou de um imenso jardim calorento, sem árvores, apenas
grama rala, separando a casa do mar. Ainda menina ela ficava na varanda,
deitada na rede, assombrada com a alegria dos primos na praia, sem entender o
frenesi dos adultos por causa de um fim de semana, sem entender a ansiedade de
todos com os preparativos para o churrasco e, mais tarde, o churrasco em si,
decepcionante por causa da carne dura; problemas assim eram relevados em nome
do que eles chamavam de divertimento.
Então, Adélia se pergunta, na página sessenta: por que a exposição
exagerada ao sol, os pulinhos na hora de tomar banho de mangueira e o ar de
satisfação com jogos de tabuleiro depois do jantar? Ela pensava essas coisas naquele momento, na
varanda, e “ainda pensa agora, discorrendo sobre seus verões no litoral”, afirma
Adélia, na página doze, fazendo-se de cinquentona.
A história continua nesse ritmo de aparente indiferença,
empurrando a personagem para um lugar imaginário, meio limbo, meio guarita, e
dali ela observa a vida, a sua e a dos outros, numa tentativa de descobrir a
razão da alegria humana. Não é depressão ou descaso porque, em suas linhas, ela
se mantém atenta a tudo aquilo. A prova é que escreveu um livro. Talvez ela não
seja alegre, talvez o universo seja triste, mas essas dúvidas não são tremendas
ou assustadoras. Não se sente nem mal nem bem – na vida e no romance; e isso
basta. Ela quer a normalidade, “o pequeno e baixo preenchendo todos os recantos
do mundo” (Adélia, pelo telefone, citando Nietzsche).
Do fim do livro vem Amélia, feliz como um animal. Conta o sumiço de vinte mil caracteres de suas
anotações de adolescência. Distraída por causa de um baseado, esqueceu-se de
salvar uma parte da história e agora dá um salto imenso para alcançar sua irmã
deitada na rede. Vem disposta, agitando o corpo saudável em diversas
plataformas, teoria e prática de mãos dadas, alegria, alegria, e de repente ela
está vendo o sol se pôr em Jeriquaquara. No texto, animação com tudo e todos, algum
sexo, várias drogas e ideias básicas para transformar o mundo. Bem
diferente da irmã, como se vê.
No miolo do livro, quando acaba a história, duas senhoras gêmeas
continuam a frequentar a casa de sempre, de jardim calorento, e Adélia vai
junto com Amélia, mesmo sem achar nada especial naquele movimento provavelmente
desnecessário. O que achou desses
passeios, repetidos ao longo de décadas ainda é motivo de divagações, pois Adélia
gosta de divagações, prefere pensar, só isso, enquanto Amélia é capaz de subir
numa prancha, enfrentar o mar e gritar “uhuuu!”. Há ainda um vento de aragem,
brando e fresco, e Amélia sonha em correr nua pela praia. Adélia, pensa sobre as desvantagens da
história, a vida em outros planetas e a vã literatura a quatro mãos gêmeas.
Um comentário:
Obrigado, Homero.
abrs
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