Não há ligações com fatos passados ou
presentes, pois estou lá na frente, mandando notícias e advertências, embora
pouca coisa possa ser feita. Nem sei se estou vivo, agora, diante de você, ou
se estou morto ou ainda vivo e morto ao mesmo tempo, conforme o gato de Schrödinger.
Só para localizar: estou a uns anos além, mas desde já aviso que não há
vantagens nisso. Pelo contrário. Eles passaram por cima do meu cadáver, há
muito tempo, e passarão de novo, se for necessário, pois o Grande Templo que
rege nosso mundo indica mais mortes – mesmo para os já mortos. Não se trata de esmagar o espírito, em
rituais solenes, como já fizeram, mas de triturar o que restou do corpo, em
minúsculos pedaços, e assim por diante, até a última partícula invisível, quase
insubstancial, cuja memória poderia guardar nossas lembranças e pensamentos e
cuja aniquilação sucessiva talvez interrompa a trajetória de ideias e vontades
não mais aceitas em nosso meio.
A nova ordem chegou, numa onda de
sacrifícios humanos à moda antiga. Agora, rezamos por outra cartilha, cheia de
proibições e regras, a começar da ciência, tornada prática ilegal e passível de
punição, com a morte, e também as artes, à exceção dos hinos religiosos não
polifônicos, foram banidos do território Nacional; enfim, todas essas questões
de ordem estética e moral são tratadas em tribunais presididos por clérigos de
costumes.
Muitos infiéis já morreram muitas vezes nas
cerimônias de trituração, onde a morte se repete, num esfarelador de ossos,
diante da família do morto. Não se pode mais, por exemplo, promover qualquer
movimento do corpo e da mente para fins de prazer e conhecimento. Do esporte à
masturbação, tudo é classificado com indigno aos olhos de Deus, assim como o
carnaval e o ensino de história. Todas as imagens do seu tempo foram apagadas a
bem da decência.
Mas há recantos discretos onde os altos
mandatários dispõem do vasto cardápio de volúpia e da luxúria, incluindo-se
nessas sessões a purgação do pecado com mais pecado, uma vez que os encontros
servem para a abertura das chamadas porteiras do inferno, em que os homens de
gravata invocam entidades claramente malignas, pelo menos para quem acredita em
alguma coisa neste espetáculo deplorável do meu tempo de hoje e do seu tempo de
amanha. Pensava-se que haveria o fim do mundo – eles mesmos anunciaram -, mas
só houve uma inversão bizarra, um retorno à estaca zero.
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