domingo, 15 de março de 2015

Notícias do futuro


Não há ligações com fatos passados ou presentes, pois estou lá na frente, mandando notícias e advertências, embora pouca coisa possa ser feita. Nem sei se estou vivo, agora, diante de você, ou se estou morto ou ainda vivo e morto ao mesmo tempo, conforme o gato de Schrödinger. Só para localizar: estou a uns anos além, mas desde já aviso que não há vantagens nisso. Pelo contrário. Eles passaram por cima do meu cadáver, há muito tempo, e passarão de novo, se for necessário, pois o Grande Templo que rege nosso mundo indica mais mortes – mesmo para os já mortos.  Não se trata de esmagar o espírito, em rituais solenes, como já fizeram, mas de triturar o que restou do corpo, em minúsculos pedaços, e assim por diante, até a última partícula invisível, quase insubstancial, cuja memória poderia guardar nossas lembranças e pensamentos e cuja aniquilação sucessiva talvez interrompa a trajetória de ideias e vontades não mais aceitas em nosso meio.

A nova ordem chegou, numa onda de sacrifícios humanos à moda antiga. Agora, rezamos por outra cartilha, cheia de proibições e regras, a começar da ciência, tornada prática ilegal e passível de punição, com a morte, e também as artes, à exceção dos hinos religiosos não polifônicos, foram banidos do território Nacional; enfim, todas essas questões de ordem estética e moral são tratadas em tribunais presididos por clérigos de costumes.

Muitos infiéis já morreram muitas vezes nas cerimônias de trituração, onde a morte se repete, num esfarelador de ossos, diante da família do morto. Não se pode mais, por exemplo, promover qualquer movimento do corpo e da mente para fins de prazer e conhecimento. Do esporte à masturbação, tudo é classificado com indigno aos olhos de Deus, assim como o carnaval e o ensino de história. Todas as imagens do seu tempo foram apagadas a bem da decência.


Mas há recantos discretos onde os altos mandatários dispõem do vasto cardápio de volúpia e da luxúria, incluindo-se nessas sessões a purgação do pecado com mais pecado, uma vez que os encontros servem para a abertura das chamadas porteiras do inferno, em que os homens de gravata invocam entidades claramente malignas, pelo menos para quem acredita em alguma coisa neste espetáculo deplorável do meu tempo de hoje e do seu tempo de amanha. Pensava-se que haveria o fim do mundo – eles mesmos anunciaram -, mas só houve uma inversão bizarra, um retorno à estaca zero.

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