Recebi
a notícia calmo como uma pedra. Já sabia dos cortes e sabia que estava no
terceiro lugar da lista. Dispensaram quase metade do pessoal para acomodar o
pessoal do novo diretor de redação, Pedro Naves. Nada a dever às mudanças de
governo. Outro chefão, outra gente para preencher os cargos. A mulher dos
Recursos Humanos parecia mais nervosa do que os demitidos e fez o discurso em
voga na época, talvez ainda hoje, sobre possibilidades de recolocação,
planejamento das contas, seguro de saúde e outras coisas que não tinham a menor
importância naquele momento. Sairíamos dali para outra vida, expulsos do
paraíso, de volta ao anonimato. No meu caso, a preocupação principal era passar
um ano sem pensar em nada; um ano sabático bancado apenas com o dinheiro do
Fundo de Garantia do Tempo de Serviço. Depois disso pensaria no quê fazer.
A
comunicação foi seca. Citaram razoes editorais, sem explicar quais, e vagamente
uma nova etapa de tecnologia nas redações. Iriam para a rua, por exemplo, os
antigos copidesques e alguns diagramadores que não se ajustaram ao desenho da
página no computador. A maioria, porém, saiu porque pertencia ao antigo
comando. Para mim e uns amigos próximos, freqüentadores do Bar Pelão, os
motivos não foram explicitados, as restrições eram de ordem pessoal, talvez o
abuso de álcool em certas situações de trabalho. Dos cortados, também estavam
os bêbados na redação. Antes, um manto de deixa pra lá cobria o ambiente e
poderíamos voltar no dia seguinte como se nada tivesse acontecido. Eu, por
exemplo, pagava o mau comportamento com boas matérias, a maioria feita em
lugares perdidos do mundo – onde eu poderia fazer as coisas do meu jeito e
beber sem preocupações com a imagem.
Enquanto
a mulher do RH nos conduzia para o inferno, com seus conselhos tirados de
manuais corporativos, eu só pensava em sair dali, pegar um táxi e desaparecer
na noite da cidade. Espremidos no corredor, aguardando sua vez de ouvir a
mulher do RH, repórteres do baixo clero e editores executivos bem pagos se
igualavam, como na morte. Planos. Uns iriam usar o saque do FGTS para investir
ou comprar um apartamento. Outros cairiam nas assessorias de imprensa, quase
sempre um fim de linha da vida de repórter. Na época em que apagávamos todos os
releases do e-mail virar assessor de imprensa era como vender a alma ao diabo
e, pior do que isso, deixar de ser jornalista. Para o RH tratava-se apenas de
demissão de funcionários; o RH, ou gestão de pessoas, como a mulher preferia,
não percebeu que muitos naquele corredor se sentiam como papas excomumangados.
Não
sei por que não se dava o mesmo comigo. Eu me senti livre para pensar desse
jeito em meu plano de dissipação, em minha perdição no mundo dos sentidos, em
meu sumiço da cidade.
-
Afinal, onde ele anda e será que está vivo? - perguntariam depois, como eu
soube por meio de um único sujeito que sabia do meu paradeiro, Carlos Carneiro,
um elo entre os demitidos e a redação.
Ele escapou por ser excessivamente discreto, redator calado e compenetrado.
À noite, no entanto, era outra pessoa. Na verdade, não gostava muito do jornal.
Gostava de beber e escrever contos.
Outra
fila surgiu, a do exame médico, enquanto eu pensava novamente em sair dali
direto para um lugarejo qualquer, onde talvez abrisse uma farmácia ou um
armarinho.
-
Vida de jornalismo é cheia de altos e baixos – disse Fabio Lages, o ex-editor
de economia, - Fosse num quartel- ele acrescentou - eu sairia daqui com a
patente de general, salário inteirinho no fim do mês. Mas saio sem quase nada.
Não há segurança trabalhista como há entre militares e funcionários públicos –
disse ele, quase em tom de discurso. Lages, um ativo defensor da livre
iniciativa em sua editoria, manifestava agora a disposição em engajar-se no
sindicalismo e em publicações de esquerda, que eram poucas e pagavam mal.
Finalmente,
a última assinatura, todos os papéis preenchidos, adeus a vinte anos de
reportagem, e adeus às viagens internacionais e adeus às belas estagiarias.
Nunca, em toda a história da imprensa uma publicação reuniu tantas moças
bonitas e saudáveis. Elas foram poupadas pelo novo diretor de redação, que
parecia mais atento às minissaias do que ao novo projeto editorial. Seis meses depois, Naves seria preso por
assassinar, com tiros pelas costas, uma colega de redação com a qual teve um
caso amoroso. Mas isso é outra história. Peguei meu táxi e fui embora para
sempre.
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